quarta-feira, 16 de maio de 2018

"Enquanto dormia Gulliver foi amarrado...", por Francisco Ferraz

O Estado de S.Paulo


Crises fazem grandes líderes, 

construtores de suas nações... 

Mas não no Brasil


“Depois do naufrágio, Gulliver com muito esforço consegue chegar à praia. Atira-se ao chão e adormece profundamente. 
Ao acordar não consegue se mover. Estava amarrado ao chão dos pés à cabeça, inclusive pelos cabelos”
‘Viagens de Gulliver’, Jonathan Swift, 1726
Mais recentemente, quando penso no Brasil vejo a imagem de Gulliver amarrado ao chão. Somos neste 2018 um Gulliver atado. Enquanto dormíamos o tempo passou e com ele, as oportunidades. Embora gigante, não conseguimos nos livrar das amarras com que os habitantes de Liliput - homenzinhos de uns 15 cm de altura - nos prenderam.
Por que não conseguimos nos livrar das amarras? Porque nós mesmos, na inconsequência de quem acha que sempre haverá tempo, nos entregamos a uma política sem grandeza que nos levou à paralisia. Amarrados a uma crise de natureza social, política, econômica e cultural, desativamos as defesas com que podíamos vencer a crise.
Crises são desafios que devem convocar o melhor que temos para enfrentá-las. São oportunidades que fazem surgir líderes com lucidez, coragem, persistência e visão. Infelizmente, precisamos buscar esses líderes na História e em outras nações. São indivíduos que, como Lincoln, Gandhi, Churchill, De Gaulle, Roosevelt, estiveram à altura do momento em que lideravam seus povos. Crises fazem grandes líderes, alguns até mesmo construtores de suas nações... Mas não no Brasil.
Não podemos usar a crise como alavanca para o avanço por que não podemos contar com nossas instituições políticas: os três Poderes estão amarrados como Gulliver.
Senadores e deputados, o Executivo e seus ministérios perderam as condições para resolver a crise. Preocupam-se com os processos em que estão envolvidos e na reeleição. Protelam decidir matérias de gravidade como a Previdência. Não bastasse, o STF, pelos conflitos pessoais e políticos que abriga, se autobloqueia. 
Como superar uma crise dessa gravidade se vivemos uma batalha surda em que grande parte dos valores indispensáveis à convivência social e a uma cultura política democrática são desprezados e contestados, dividindo a Nação em blocos antagônicos?
Nossa política foi penetrada por práticas e princípios que se opõem abertamente aos valores centrais de qualquer democracia. Nossa política deixou em segundo plano a discussão sobre políticas públicas para discutir a própria organização da sociedade. Abriram-se então as comportas para que todos os valores que regulam a vida social entrassem em questionamento: família, religião propriedade, crime, liberdade de imprensa, mercado, competição, democracia representativa, livre-iniciativa, educação, liberdade de imprensa, responsabilidade individual, mérito.
Pratica-se aberta e ostensivamente uma política em que as ideologias penetram todas as esferas da vida como uma nova ética; em que as relações pessoais e familiares são inferiores em importância às relações fundadas na ideologia; em que todo aliado é virtuoso e bem-intencionado e todo adversário é mal-intencionado e criminoso; em que se nega a existência de princípios absolutos na moral e na religião; em que se confunde educação e doutrinamento; e na qual o objetivo buscado legitima qualquer ato que contribua para atingi-lo. 
Não são poucos os que argumentam que toda disciplina é odiosa; toda autoridade legal é ilegítima; que a liberdade verdadeira só existe quando há igualdade absoluta; que a responsabilidade é um conceito perigoso porque provoca desigualdades e individualiza situações que deveriam ser coletivas; que toda diferença social é uma exploração; que o mérito é um critério pernicioso por provocar a discriminação e a desigualdade; que todo delinquente é vítima; que a verdade e todas as demais virtudes são relativas.
Já se diz entre nós que obedecer e fazer obedecer à lei e punir criminosos faz mal à economia do País; que, dependendo de quem é acusado, a culpa é absolvida pela intenção; em que “se eu fiz, mas tu também fizeste” estamos iguais, nenhum pode acusar o outro e eu estou inocentado.
Já se pratica uma política em que a lei vigente poderá ser respeitada sempre que for politicamente conveniente, caso contrário ela deverá ser assediada e contestada continuadamente para desgastá-la e derrogá-la na prática. Neste contexto, a qualidade da discussão política cai dramaticamente: o grito equipara-se ao argumento, a coerência é substituída pela desfaçatez, a ousadia afasta a prudência; a mentira se impõe como verdade; a publicidade se encarrega da persuasão.
Esta listagem nem se tornou ainda universal em nossa cultura política, nem esgota as linhas de conflito nessa batalha política pelos corações e mentes dos brasileiros. Vivemos, se me é permitida a ousadia de afirmar, uma “situação constituinte”, por via da qual normas são derrogadas e caem em desuso pelas manifestações de rua e pela ousadia dos atrevidos, perante as quais os Poderes se submetem pelo silêncio. 
Esta listagem, embora reduzida, dá uma ideia do quanto nós avançamos na destruição dos fundamentos de uma sociedade democrática, próspera e civilizada. Ela nos alerta para o quanto já foi perdido e será necessário recuperar.
O fato é que muitas de nossas escolhas foram erradas e, quando não erradas, fracas; nossas decisões sempre evitam o custo político das ações; nossa percepção do tempo é singular: vivemos um presente fugaz, mas sem sacrifícios; para trás está o território das heranças malditas e para a frente, o futuro que certamente será glorioso, ainda que nada façamos para realizá-lo. No tempo presente nossa convicção mais profunda é de que o Estado sempre terá recursos para bancar a despesa pública; a tarefa do governo, então, é distribuir, não estimular a produção, e quando faltar aumenta-se a despesa e se compensa tirando a gordura dos que têm mais.
*PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA E EX-REITOR DA UFRGS