sexta-feira, 1 de maio de 2015

"Indignos", por Fernanda Torres

Folha de São Paulo


Em uma entrevista ao jornal "Valor Econômico", o presidente da Funarte, Francisco Bosco, afirmou que seu pai, João Bosco, teve dignidade suficiente para jamais ter feito uso das leis de incentivo à cultura.

Segundo o presidente, o subsídio a artistas consagrados rouba o espaço dos menos favorecidos. Roberto Carlos é citado como um exemplo indigno.

Consagrado é um termo genérico de difícil definição. Que linha separa o consagrado do resto? Um contrato de televisão? O número de DVDs vendidos? 

Em que momento um artista deixa de ser digno da lei?

Renata Sorrah é uma atriz consagrada. A sua parceria com a Companhia Brasileira de Teatro, do diretor Marcio Abreu, faria parte da lista indigna?

As leis de incentivo foram criadas para democratizar a cultura. Antes, cabia ao produtor correr atrás do chamado dinheiro bom, saído do marketing das empresas, limpo de renúncia fiscal.

Por se tratar de uma ação de interesse comercial, os ditos consagrados se mostravam mais aptos a atrair tais recursos.

As leis de incentivo vieram sanar a injustiça. Nas últimas décadas, empresários e artistas foram encorajados a utilizá-las. Como resultado, o guichê do patrocínio fechou e o atendimento cultural se estruturou segundo as novas regras vigentes.

A cultura acabou tão dependente do Estado que se transformou num fardo incômodo, vista com desdém por grande parte da população. Nos tornamos os brioches de Maria Antonieta.

Hoje, a prestação de contas para justificar o uso do incentivo é tão complexa que o contador pesa mais do que a ficha técnica no orçamento de um projeto; já um anúncio pequeno de jornal vale mais do que um mês de salário de um ator.

Na bilheteria, as permutas, descontos e promoções, além da prática da meia-entrada para estudantes, terceira idade e servidores públicos, fazem com que apenas 20% do público, se tanto, pague pelo preço cheio do ingresso.

Uma turnê pelo Brasil de um pequeno espetáculo, que arque com passagens aéreas, hospedagem, alimentação, divulgação, mídia, transporte, aluguel de equipamento e teatro, mesmo com casas lotadas, sai no vermelho.

Sem ter como retomar a independência de outrora, o chamado "consagrado" é tachado de aproveitador quando se vale da lei. Mas João Bosco que, segundo Francisco, jamais se conspurcou com o benefício, nunca gerou emprego, ou assumiu o risco de ter uma prestação de contas revista no Tribunal de Contas da União. Quem foi mais digno?

Se pensarmos na cultura como mercadoria –ou commodity, para usar uma palavra da hora–, o incentivo a um show do Roberto devolve ao fisco, em forma de imposto, um valor que nunca é computado.

O apoio faria parte da dita economia criativa.

É papel do MinC (Ministério da Cultura) atender à demanda das comunidades carentes, dos Estados esquecidos, do artista anônimo; é seu dever cuidar do patrimônio histórico, punir fraudes e corrigir distorções. O problema não está na turnê do Roberto.

A verba da pasta não dá conta de um país diverso e injusto como o Brasil. Mas é preciso pensar não só no caráter assistencial, como também na saúde financeira da produção cultural.

Não há como se opor aos avanços da tecnologia, mas o ministério é um aliado importante na luta pela remuneração do direito autoral, algo que os gigantes da internet parecem ignorar.

A Funarte exerceria um papel mais profícuo se agisse contra a informalidade, desburocratizando o setor, regularizando as relações de contrato entre produtores, artistas, técnicos e salas de espetáculo, buscando saídas para a bitributação.

Concordo com a tentativa de reinserir a cultura na livre economia, recuperando a prática do patrocínio, mesclando isenção fiscal com interesse de marketing. A crise atual prova que instrumentos assistencialistas, como a Bolsa Família, não garantem progresso a longo prazo.

Espero do MinC uma distribuição justa de valores, bem como um olho atento, para garantir que o dinheiro captado seja realmente investido em cena.

O inimigo do artista não é o próprio artista, como faz crer a entrevista de Bosco.

Um "consagrado", palavra nefanda, é alguém que, apesar das violentas reviravoltas do país, teve fôlego para chegar até aqui. A Funarte deveria protegê-lo, não demonizá-lo.