domingo, 6 de julho de 2014

Livro traça história da boemia no Rio

- O Globo

Obra retrata período que vai da abertura dos salões, com a chegada da Família Real, às manifestações na Lapa

 

Casal dançando rock and roll no lançamento do filme ‘Ao balanço das horas’, no cine Carioca
Foto: Arquivo
Casal dançando rock and roll no lançamento do filme ‘Ao balanço das horas’, no cine Carioca - Arquivo




Um é o empresário-boêmio, que fez parte do time de fundadores do grupo Casa da Matriz e hoje coordena o Fórum Economia da Noite no Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes. O outro é o boêmio-empresário, designer por profissão, que ajuda a organizar, como diletante, o Baile do Sarongue e a sempre concorrida festa de réveillon na areia do Arpoador. Em comum entre os dois, o fato de serem cariocas e assumidamente apaixonados pela vitalidade dos encontros da cidade. Leo Feijó e Marcus Wagner são agora também os autores de “Rio cultura da noite” (Casa da Palavra), volume ilustrado, com pegada de almanaque e mais de 400 páginas, que chega às livrarias na semana que vem com o desafio de traçar uma história da noite carioca, dos primórdios aos dias de hoje.
— Para nós, a noite não é simplesmente o intervalo entre um dia de trabalho e outro. Vemos a noite como um fim — proclama Marcus. — É aquela noite que é força motriz da cultura da cidade. Você consegue identificar um pouco da saúde de uma sociedade por sua vida noturna, pela alegria das pessoas que estão nela. A noite pertence àquele pessoal que não é teleguiado pelo marketing, que sai simplesmente por sair. E o carioca tem essa cultura de ser atraído pelos grupos.

— As vanguardas culturais se encontram na noite — completa Leo, que, a pedido do GLOBO, se encontrou com Marcus para um bate-papo no Clube dos Democráticos, na Lapa (um espaço simbólico, aliás, já que, fundado em 1867 por foliões da área, fervilha nos dias de hoje graças aos jovens apreciadores do samba e do forró).

“Rio cultura da noite” começou a nascer em 2008, quando Leo Feijó, ainda envolvido com a administração da Casa da Matriz e desencantado com o fechamento de seu Cinematheque Jam Club (em Botafogo), conheceu Marcus Wagner, que já tinha uma pequisa sobre a noite de Copacabana entre os anos 1940 e 1960 (que ele transformara em duas graphic novels, “Soirée à Copacabana” e “L’aube à Copacabana”, publicadas na França).

— A minha parada era mais a noite dos anos 1980 e 1990, então resolvemos unir nossos conhecimentos. A ideia era falar sobre esse ambiente que não está representado nos livros de música, sobre esse cara que abre a casa noturna, que faz a gestão, que contrata o músico, que vive esse desafio e que nunca é reconhecido — conta Leo, sem pudores em puxar a brasa para a própria sardinha.

No projeto inicial do “Rio cultura da noite”, o escopo da pesquisa era limitado a bem menos de cem anos.

— Mas aí a gente foi fazendo a pesquisa de trás para frente e foi até a abertura dos salões cariocas, com a chegada da Família Real ao Rio, em 1808 — explica Marcus. — Costurando o assunto com os eventos históricos da cidade, você vai entendendo muito melhor que o encontro das pessoas acontece quando a cidade está vascularizada. O momento de transição radical do Rio, de uma cidade monótona para uma capital com vida noturna bem mais intensa do que a de hoje, se deu com a implantação do transporte público. Entre 1870 e 1900, a noite do Rio mudou completamente.



O início do século XX está retratado no livro em vários aspectos. Os encontros na rua, o aumento da presença da mulher na noite e os “chopes berrantes” — casas em que álcool e música colaboravam para elevar os ânimos. Foi uma época de consolidação das gravadoras, do samba, do cinema, dos teatros. Um tempo em que, segundo o poeta Olavo Bilac, era possível identificar os bairros do Rio apenas pelas danças executadas nos salões.

As mudanças dos costumes, da música, dos estupefacientes e da geografia da noite desfilam pelo livro. Marcus gosta de lembrar as palavras do empresário e boêmio Paulo Fernando Marcondes Ferraz, um dos entrevistados na pesquisa (que deve virar documentário). Ele, que começou sua jornada pela noite frequentando a mítica boate Vogue, em Copacabana, é taxativo: “Só o que mudou mesmo foi a mulher. Ela era o ser adorado, venerado. No primeiro encontro, beijava-lhe a mão. Hoje em dia, a mulher é o cara!”.

Dos tempos em que se flertava usando leques até o dos pitboys, a noite carioca percorreu longo caminho. E chegou bem diferente a esta era das redes sociais.

— Não existe mais uma segmentação de estilos musicais. Os públicos passaram a se misturar muito — acredita Leo Feijó. — Hoje, por exemplo, o Rio tem a (reunião de DJs-produtores) Wobble, que faz festa na Praça da Bandeira, com duas mil pessoas, para financiar uma edição num clube fechado.

E a Zona Portuária pode vir a ter uma vida noturna mais ativa. Só espero que lá não se torne um Puerto Madero (área portuária em Buenos Aires), que não é um bom exemplo de revitalização. A elitização é preocupante. Como vai ser a ocupação da Zona Portuária do ponto de vista cultural?

— A cidade é assim mesmo, muito mutante. Uma coisa sumia, e aí aparecia outra — analisa Marcus.

 — Os cassinos foram fechados e, praticamente da noite para o dia, surgiu Copacabana. A galera que ficou desempregada nos cassinos arrumou trabalho nos inferninhos, nos lugares de música ao vivo em Copa.

E, no ritmo da mutação, o Rio experimentou movimentos circulares. Caso da Lapa, epicentro da boemia na década de 1920, que passou anos de decadência até voltar a ferver, na década de 1990. Foi lá, aliás, que Leo abriu, com o Grupo Matriz, a Choperia Brazooka e o Teatro Odisseia.

— A Lapa foi uma oportunidade para quem queria trabalhar com vida noturna e com produção de shows nos anos 1990 e 2000, porque a Zona Sul estava mais cara e não tinha imóveis. A retomada foi um pouco motivada por isso também. E a notícia da reabertura do Circo Voador (fechado entre 1996 e 2004) atraiu mais gente querendo investir. Mais até do que a questão dos imóveis, há a da legislação, que é muito restritiva na Zona Sul, você não consegue alvará para fazer uma casa de shows hoje lá.

Recentemente, o que se tem visto é a volta às ruas, em festas, shows e boemia em geral.
— As casas noturnas já tiveram seu ápice em outras épocas, mas a vida noturna continua acontecendo fortemente na rua. Misturaram-se as culturas de ocupação das ruas, de carnaval e de botequim — diz Marcus.

Para Leo Feijó, além de almanaque, “Rio cultura da noite”, que conclui o seu estudo em 2013, mencionando o impacto das manifestações de rua na Lapa, é também, em certa medida, “um manifesto”:

— No Rio, apesar de o Centro ter se revitalizado e agora ter a Zona Norte voltando a ter eventos, você conta com poucas casas noturnas, poucos palcos pequenos e médios (leia, ao lado, matéria sobre o fim do Studio RJ), que é o que dá vitalidade à música. Sou pessimista. Se você não cuidar do que aparentemente se recuperou na Lapa, pode ser que tenha outro momento de decadência. Mas tenho otimismo em relação à cidade. As transformações urbanísticas recentes são positivas, vão incentivar a circulação entre bairros, o Zona Sul-subúrbio que não existia.