quinta-feira, 31 de julho de 2014

Sem acordo, Kirchner, a Dilma ´trambique` dos hermanos, apela para ato político na tentativa de desviar o foco do calote

por - O Globo

Audiência reúne nesta sexta-feira‘abutres’ e negociadores da Argentina, enquanto bancos negociam saída alternativa



BUENOS AIRES e NOVA YORK - Sem a possibilidade real de um acordo entre bancos privados e “fundos abutres” que possa tirar seu país da situação de “calote seletivo”, a presidente Cristina Kirchner reforçou nesta quinta-feira a politização, apontada por seus opositores, da delicada crise financeira que assola a Argentina. Em discurso transmitido por rede nacional de rádio e TV, que começou com lágrimas nos olhos e uma emotiva lembrança de seu marido e antecessor, Néstor Kirchner, ela minimizou o calote e voltou a criticar a Justiça americana, sem sinalizar com uma saída. Cercada de apoiadores, ela anunciou um aumento da aposentadoria mínima.

— Estamos no dia 31 de julho e o mundo continua andando, e também a República Argentina, o que é uma boa notícia... Amanhã começa agosto, e assim continuará a vida — declarou, diante de uma plateia de governadores, ministros, sindicalistas e todo o seu gabinete.

A seu lado, o ministro Axel Kicillof acompanhou sorridente o discurso. Pouco antes, em entrevista no Ministério da Economia, ele afirmara que falar em calote era “uma estupidez atômica”.

— Dizer que estamos em calote é uma estupidez atômica... querem gerar um clima de pânico — disse, insistindo que para estar em calote, a Argentina não poderia estar pagando os credores.
Como o país não está saldando seus vencimentos devido a uma decisão do juiz Thomas Griesa, a Casa Rosada considera que se trata de situação “inédita e não pode ser considerada calote”.

Griesa convocou para esta sexta-feira uma nova audiência sobre o impasse entre a Argentina e os “fundos abutres”, segundo um porta-voz do tribunal. Ainda não há informações sobre o teor da reunião, marcada para as 11h (12h, horário de Brasília). Comparecerão representantes da Argentina e dos “abutres”, segundo o jornal argentino “Clarín”. Este afirma que o motivo podem ser os fundos que foram depositados e bloqueados na Justiça no Bank of New York Mellon ou outra proposta.

Além disso, bancos estrangeiros estariam negociando a compra dos títulos da dívida argentina em poder dos “abutres”, segundo o jornal argentino “Ambito Financiero”. As negociações entre bancos argentinos e os fundos não teria ido adiante, afirma o diário, mas as conversas teriam sido retomadas ontem por instituições estrangeiras como Citibank, JP Morgan e HSBC. A ideia seria comprar os papéis nas mãos dos abutres ou depositar uma garantia para que as negociações com o governo argentino sejam retomadas.

Já o Aurelius Capital Management, um dos fundos chamados de “abutres”, disse que não recebeu propostas viáveis do setor privado para vender seus títulos não reestruturados da dívida argentina. Apesar da declaração negativa do grupo, fontes ouvidas pelo jornal argentino “Clarín” afirmam que o Elliot Managment (controlador do NML) conduzia, em sua sede em Manhattan, negociações com bancos estrangeiros.


DISCURSO COM LÁGRIMAS NOS OLHOS

Em Buenos Aires, Cristina e Kicillof foram as estrelas de um ato convocado na Casa Rosada para anunciar novo aumento da aposentadoria mínima, de 17,21%, para 3.231 pesos (US$ 394). A presidente e seu ministro preferido foram aplaudidos por todos os setores convocados e por centenas de militantes de movimentos sociais kirchneristas, que lotaram os pátios internos e corredores do palácio. O lema “pátria ou abutres” esteve no centro da cena.

— Calote seletivo... isso não existe. As únicas causas de calote estão nos contratos, e não aparece impossibilidade de pagamento. Impedir que alguém receba não é calote, terão de inventar uma palavra — enfatizou a presidente.

Ela leu um discurso do marido, de 2004, no qual Kirchner dizia que o país não podia pagar mais que 25% da dívida e assegurava que “cada vez que me pressionam penso nos que sofrem, se me puseram como presidente devo ter coragem para defender nossa pátria”.

— Diziam que era um louco... seria bom ter tido mais loucos como esses — disse Cristina, com lágrimas nos olhos.

Depois, em seu discurso, Cristina deu grande importância a um eventual acordo entre os bancos privados e os “abutres”, mas mencionou qualquer solução. Suas declarações aumentaram a preocupação entre os analistas.

Já Kicillof alfinetou o mediador nomeado por Griesa, Daniel Pollack, que divulgou nota informando o fracasso das negociações. Ele usou os termos “calote iminente”, dizendo que isso provocaria “danos reais e dolorosos aos argentinos”.

— Pollack não tem a mais pálida ideia do que é o Mercosul — disse Kicillof, para quem Griesa favoreceu os “abutres" nas negociações. — Deram para a outra parte a metralhadora e a faca, é uma mesa inclinada de negociações, insólito é desproporcional.


TEMOR DE NOVAS DEMANDAS

Um dos novos temores dos analistas no atual cenário de calote seletivo é o de que credores reestruturados da Argentina (dos bônus PAR, Discount e Global) solicitem o que se chama “aceleração dos vencimentos". Para isso, que está previsto nos contratos dos papéis, é preciso reunir pelo menos 25% do total de detentores de um tipo desses bônus, que podem pedir à Justiça americana receber todo o pagamento (principal e juros) num prazo muito mais curto do que o vencimento do título.

O pedido só pode ser feito em caso de calote, portanto a Justiça e os bancos envolvidos deverão determinar se a Argentina está em situação de default para autorizar a aceleração dos vencimentos. Segundo estimativas do mercado, o valor a pagar poderia alcançar o total de reservas do Banco Central do país, em torno de US$ 29 bilhões.

Os credores que possuem esses bônus, emitidos nas trocas de 2005 e 2010, entre os quais haveria “fundos abutres”, têm até 30 de agosto para reunir os 25% e fazer uma solicitação. A autorização, porém, poderia demorar mais de dois meses.

O principal índice de ações da Bolsa de Buenos Aires, o Merval, encerrou o dia em queda de 8,39%, aos 8.187 pontos, no primeiro pregão após o default. Todas as 13 empresas que compõem o índice recuaram. No Brasil, refletindo a crise no país vizinho, o índice de referência Ibovespa recuou 1,84%, aos 55.829 pontos. O dólar comercial, por sua vez, registrou valorização de 1,42%, a R$ 2,275.

* Com agências internacionais