sexta-feira, 3 de outubro de 2025

'Crônica de um discurso oco', por Eugênio Esber

A Suprema Corte reverencia um texto constitucional em palavras, mas, na vida real, o pisoteia 


 Ministro Edson Fachin  Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Rosinei Coutinho/STF


— Viu só? Que baita discurso. Algumas coisas eu não entendi direito. Por exemplo, na hora em que ele falou “zurzir” eu tive de ir ao dicionário. Aí vi que significa “maltratar”. Mas até por isso já valeu, não é? Aprendi uma palavra diferente. Acho que vou usar com as gatinhas lá da faculdade pra impressionar… 

Foi assim, exultante, que me chegou Eusébio, jovem que me foi apresentado por dois amigos com quem troco ideias de vez em quando, o Alter e o Egon. 

Eusébio é um garoto de bons sentimentos. É visível que sonha com um país melhor — embora em um primeiro momento só esteja mesmo sonhando com noites melhores e, bem, tudo aquilo que cabe na fantasia dos 17 para 18 anos. 

Notei que Eusébio trazia a print do discurso de 19 laudas de Fachin com vários trechos pincelados por uma caneta marca-texto naquele tom de verde que o Palmeiras adotou tempos atrás. 

Como a água do chimarrão estava morna, aproveitei para sorver goles mais longos. Um jeito de deixar o Eusébio mais tempo com a palavra. 

— Olha isso aqui, ó: “Nosso compromisso é com a Constituição. Repito: ao Direito, o que é do Direito. À política, o que é da política.” Perfeito, não acha? 

— Sem dúvida, Eusébio. É frase pra emoldurar, mesmo. 

— E esta outra parte? Eusébio empostou a voz para assumir um tom solene, como se estivesse no púlpito. “Realçando a colegialidade, aqui venho a fim de fomentar estabilidade institucional.” Meu professor explicou um dia esse lance da colegialidade e eu achei super-hiperimportante. São onze ministros, e ali todo mundo dá sua visão e, no fim, a decisão é no voto. Bem melhor que uma única pessoa decidindo — tipo, um presidente da República.


Foto: Gerado por IA


Neste ponto, pedi a palavra antes que meu jovem interlocutor fosse adiante na leitura de seu polígrafo. 

— Eusébio, tu sabias que a maior parte das decisões do Supremo Tribunal Federal é tomada por um só ministro? Pesquisa sobre isso: decisões “monocráticas”.

— Tá, eu tô sabendo disso, mas aí é porque é um assunto urgente, que não pode esperar até que todos possam se reunir, não é? 

— Nem sempre. Aliás, em grande parte das vezes, não é assim. Então, que “colegialidade” é esta se em mais de 80% das vezes um ministro decide sozinho, à revelia dos outros dez? E estamos falando de dezenas de milhares de decisões que têm repercussão na vida de todo mundo. São questões de patrimônio, de direitos que estão sendo disputados pelas partes. São casos criminais, em que o sujeito pode ir preso, ou ser solto, enfim… Um ex-ministro do STF, Sepúlveda Pertence, chegou a dizer que o Supremo tem onze “ilhas”. Até existe um livro a respeito dos “onze supremos”. Pode procurar. 

Eusébio continuava empolgado. Apreciei a garra e o idealismo do jovem. 

— Tá, mas isso foi assim até agora. Só que o Fachin tá dizendo agora que ele vai realçar a colegialidade. Pô, o cara deixou claro que… que sei lá, ele vai consertar o que não está certo. Ele deixou claro que veio para mudar muita coisa… Interrompi outra vez. 

— Não quero te contaminar com meu ceticismo, mas acho bom moderar expectativas. Fachin é apenas um dos onze ministros. O fato de presidir o tribunal dá a ele algumas prerrogativas, como, por exemplo, decidir que caso vai a julgamento e quando. Mas o voto dele vale tanto quanto o voto dos colegas. E, como já te falei, vários colegas dele estão participando da farra de decisões monocráticas sem dar bola para a “colegialidade”. Que é, claro, um princípio importantíssimo, mas que se tornou isso aí — enfeite retórico, peça de discursos como este do Fachin ou dos teus professores. 

Senti que falei demais e que Eusébio estava em outra faixa de frequência, um tanto disperso. Olhava suas marcações, parecendo mais preocupado em pensar em uma resposta do que em processar o que eu estava dizendo. Decidi fazer uma pausa para me servir de chimarrão novamente. O silêncio mandou a bola para o campo dele. 



Foto: Gerado por IA


— Tem outra coisa aqui, olha só. “O país precisa de previsibilidade nas relações jurídicas e confiança entre os Poderes. O Tribunal tem o dever de garantir a ordem constitucional com equilíbrio. Hoje é dia de reafirmar compromissos. É mandatório respeitar as leis e as instituições. Contudo, a verdade é que as pessoas precisam querer e ter razões para confiar no sistema de justiça.” Falou tudo. Tudo!

— Concordo, Eusébio. Mas me desculpa outra vez. O Fachin diz que as pessoas precisam… Como é que é, mesmo?

— “Precisam querer e ter razões para confiar no sistema de justiça.” Foi assim que ele falou. 

— Bonito. Só que mais da metade dos brasileiros não confia no STF. 51%! É uma pesquisa que foi feita ainda agora… Experimenta sair na rua e perguntar ao povo por quê. A verdade está na rua, não no discurso. Não sei se Fachin tem toda esta disposição para mudar o que está errado no STF. E, mesmo que esteja a fim, vai ter de lidar com as outras dez ilhas. O jovem folheou as páginas do discurso, percebeu que mal havíamos superado a discussão dos parágrafos iniciais e “pediu vistas”. 

— Acho que não vai dar tempo. Tem tudo isso aqui, ainda, para ver. São 19 páginas. Outro dia a gente termina a conversa, pode ser? 

— Claro, fica para outro dia. 

— Só uma coisa: eu acho que o senhor tá pegando um pouco pesado com o Fachin. Tá olhando muito pra trás. Não tiro a razão, o senhor é mais vivido, e tal… Mas isso… tudo isso aqui que o Fachin falou é bom demais. Quer que eu deixe o discurso dele com o senhor? Aceitei a gentileza e agradeci. Admito que me ficou um travo amargo de saber que talvez tivesse profanado algumas das mais cândidas percepções do rapaz. Mas ele, coisa de jovens, saiu do jeito que chegou — rindo, confiante. A vida a lhe sorrir. Fiquei eu com meus papéis pintados de verde-Palmeiras e um chimarrão com a erva já desmoronando. Em reconhecimento a Eusébio, digo que ele assinalou as partes realmente relevantes do pronunciamento de posse de Edson Fachin. A começar pelo trecho lapidar do início, que monopolizou meus pensamentos. “Nosso compromisso é com a Constituição. Repito: ao Direito, o que é do Direito. À política, o que é da política.” 

“Nosso”, de quem? Talvez seja o compromisso de Fachin e de uma minoria de integrantes da corte. Mas não é o de Gilmar Mendes, o decano do STF. Um dia depois do sóbrio discurso de posse de Fachin, Gilmar já adejava em um dos grandes palcos do lobismo nacional — o Lide, fórum de João Dória que congrega a elite do poder político, empresarial e da burocracia de Estado. Ali, em meio a representantes de vários grupos de pressão com interesse direto em causas que transitam ou podem transitar na corte, Gilmar fazia política ao defender a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma legislação que proteja autoridades brasileiras de sanções impostas por outros países. Naquele ambiente de gente da política e de homens de negócios, o elogiável enunciado de Fachin — “Ao Direito, o que é do Direito: à política, o que é da política” — soa inocente, quase pueril. 

Gilmar, o homem que efetivamente manda no Supremo, é, por conseguinte, o homem que efetivamente manda no governo e também no Congresso Nacional. Age diretamente ou, quando conveniente, por meio de seu mais saliente e voluntarioso discípulo — o ministro Alexandre de Moraes, comandante de uma máquina de perseguição política tão brutal que o fez ser enquadrado pela Casa Branca na lista de violadores de direitos humanos punidos com base na lei norteamericana Global Magnitsky Act.



Foto: Gerado por IA 


A mesma liderança que permitiu ao decano dar as cartas na política brasileira e tornar Moraes o ceifador de vidas e reputações agora cobra seu preço ao colocá-lo na mira das terríveis sanções financeiras e patrimoniais da Magnitsky. Queira Fachin ou não, Gilmar assume, sem pruridos, um papel de formulador e operador político ao coagir o Congresso a criar uma lei para barrar a aplicação de sanções internacionais aos poderosos do Brasil. O que está propondo é algo tão absurdo como imaginar que os brutamontes do regime de Nicolás Maduro possam se proteger da responsabilização internacional por meio de uma lei aprovada no corrompido Congresso venezuelano. 

Aprovar a, digamos, “Lei Gilmar Mendes” será tornar o Brasil um ambiente ainda mais indigesto para empresas norte-americanas, e é sabido que vem dos EUA o maior volume de investimentos estrangeiros diretos na economia brasileira. Não poderia haver maior golpe contra o que Fachin apregoou em seu belo discurso. “O país precisa de previsibilidade nas relações jurídicas”, sustentou, fazendo a apologia da “segurança jurídica como base da confiança pública”. Gilmar deve ter aplaudido esta parte, mas com algum constrangimento. Afinal, pertence a ele um inegável protagonismo em revisões de jurisprudência que fizeram o STF andar em zigue-zague em assuntos politicamente nevrálgicos — como a prisão após segunda instância, decidida em 2009, mantida em 2016 e abolida em 2019, para alívio de Lula, que enfim pôde deixar a cadeia


Hoje, Gilmar está novamente no centro do grande debate político nacional ao militar contra a campanha pela aprovação de uma anistia ampla, geral e irrestrita retroativa a 2019, marco zero da juristocracia brasileira. Foi quando o STF abriu, ao arrepio da Constituição e das leis, uma ditadura que transformou o país em uma panela de pressão antes, durante e depois dos atos de 8 de janeiro de 2023. Ao lado do ex-presidente do STF, Luís Roberto Barroso, de Moraes e de Flávio Dino, Gilmar tenta empinar uma tese jurídica absurda — a anistia, mesmo se aprovada pelo Congresso, como manda a Constituição, seria derrubada pelo Supremo por ser inconstitucional. 


Gilmar Mendes está novamente no centro do grande debate político nacional ao militar contra a campanha pela aprovação de uma anistia ampla | Foto: Antonio Augusto/STF


Pois bem: se as palavras do discurso de Fachin enaltecendo a Constituição e o Estado de Direito servirem para algo mais do que uma efêmera e vazia brilhatura de posse, estamos diante de um escândalo. A Suprema Corte reverencia um texto constitucional em palavras, mas, na vida real, o pisoteia. A Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Carta Magna de 1988 decidiu que crimes políticos seriam passíveis de anistia — incluindo-se, entre eles, até mesmo tentativa de golpe de Estado (golpe de verdade). Lula, deputado federal constituinte à época, votou favoravelmente à medida, acompanhado por Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin e mais 277 parlamentares, como apurou o jornalista Kim Paim a partir de uma pesquisa que fez nos arquivos digitais da Biblioteca Nacional. 

Em resumo, nada há de coerência jurídica — muito menos política — na débil alegação contra a constitucionalidade da anistia. E agora, ministro Edson Fachin? Como colocar o gênio novamente dentro da garrafa? Como proceder para que Gilmar e os demais expoentes da politização do STF retornem a seus estritos papéis de guardiões da Constituição depois de haverem experimentado desfrute de um poder tão absoluto que os fez pairar até mesmo acima do texto constitucional? 

Eusébio, meu jovem interlocutor, marcou a seguinte promessa que o novo presidente do STF fez ao tomar posse.

“Endereçaremos nossos esforços na instalação de um centro de estudos constitucionais.” 

De minha parte, recebo a novidade mais como ameaça do que como promessa, ante o risco de que sejamos expostos a novos contorcionismos interpretativos quando o que o país precisa, e infelizmente não tem tido, é uma Corte que aplique, e não reinvente, o que está plasmado na Constituição da República. Como eu, milhões de brasileiros sem formação jurídica são capazes de perceber quando interpretações aberrantes e casuísticas urdidas nos gabinetes dos ministros do STF atentam contra os claríssimos mandamentos constitucionais sobre liberdade de expressão, imunidade parlamentar e tantos outros direitos e garantias individuais. 

Chega de “principiologia” e quejandos que, por obra de Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, instalaram no Brasil uma geleia institucional ao gosto de uns poucos que mandam. O país está cindido ao meio, politicamente. Reconciliar as metades só será possível se o jogo democrático correr livremente sob a égide da lei e da Constituição, e com árbitros verdadeiramente imparciais. Anular os processos ilegais movidos pelo STF e pelo TSE contra conservadores e liberais é um primeiro e óbvio passo. Mas se ao STF falta a grandeza de reconhecer os arbítrios que praticou, que ao menos saia da frente para que o Congresso aprove uma lei de anistia ampla, geral e irrestrita. 

Será a paz. Um livramento para os que sofrem injustamente. E uma trégua até mesmo para os abusadores, hoje aterrorizados pelas punições vindas dos Estados Unidos.


STF falta a grandeza de reconhecer os arbítrios que praticou, que ao menos saia da frente para que o Congresso aprove uma lei de anistia ampla, geral e irrestrita | Foto: Luiz Silveira/STF

Eugênio Esber - Revista Oeste