sexta-feira, 3 de outubro de 2025

'A verdade sempre vaza', por Augusto Nunes e Eliziário Goulart Rocha

 O STF finge não enxergar as bandidagens reveladas pelo perito que caiu fora do bando







Ao saber que está proibido pela Lei Magnitsky de dar as caras nos Estados Unidos, Luís Roberto Barroso reagiu com uma frase que mistura ironia e indiferença. “Sempre haverá Paris…”, desdenhou. A Cidade Luz não basta, informam mudanças visíveis a olho nu. Festas e cantorias já não são tão frequentes, os vincos no rosto denunciam noites mal dormidas. Até as sobrancelhas habitualmente irretocáveis andam desfiguradas por dois ou três fios fora do lugar. A melancolia se abranda só quando discursa. Barroso adora ouvir a própria voz. Deve ser por isso que anda mais falante do que nunca. 

Em programas na TV, palestras, solenidades oficiais e conversas fora da agenda, o ministro repete que, nestes dois anos em que presidiu a Corte, o Supremo restaurou de vez a saúde da democracia ameaçada pelos manés da extrema direita e garantiu a lisura das eleições que derrotaram o bolsonarismo. Ainda estamos longe da perfeição, mas chegaremos lá. Barroso promete que o Supremo vai “recivilizar o Brasil”. Tão audacioso projeto incluiu “a reocupação pela imprensa tradicional do espaço perdido para a internet”. De saída da presidência do Supremo, ele acha que as redes sociais mentem muito, não filtram o que publicam e acabam poluindo com uma imensidão de fake news o noticiário bem mais cuidadoso dos jornais, telejornais e revistas de antigamente. 


Luís Roberto Barroso, presidente do STF – 1º/8/2025 | Foto: Reprodução/YouTube 


A opção de Barroso faz sentido. Quando ele louva a sabedoria de Gilmar Mendes, a imprensa tradicional acha desnecessário lembrar que o agora admirador do decano já enxergou uma figura “horrível, com pitadas de psicopatia”, no decano que há quase 30 anos vem livrando de castigos todos os patifes de estimação (alguns deles capazes de impressionar até um serial killer de filme americano). O jornalismo estatizado jamais viu semelhanças entre Alexandre de Moraes e Lavrenti Beria, chefe da polícia secreta nos piores anos da União Soviética. “Mostre-me o homem e eu lhe mostrarei o crime”, reiterava o carrasco preferido de Josef Stalin. 

Jornalistas providos de independência intelectual veem as coisas como as coisas são e contam o caso como o caso foi. A turma dos antigos jornalões, hoje miniaturizados, e dos estúdios futuristas ultramodernos sempre foi bem mais dócil. Essa vê o que convém ao dono da empresa, aos anunciantes e aos poderosos federais. Para profissionais domesticados, Moraes não é um intolerante sem cura que, fantasiado de protetor do Estado Democrático de Direito, trata a Constituição a socos e pontapés. Nostálgico dos tempos analógicos, é natural que Barroso se oriente por notícias e análises tão comprometidas com a verdade quanto Dilma Rousseff.


Os ministros do STF, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, Luiz Inácio Lula da Silva e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, durante a solenidade comemorativa ao Dia do Soldado, em 2024, Brasília | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil 


Ao limitar-se a tais fontes de informação, por exemplo, o ministro lerá que “Vaza Toga foi um suposto vazamento de mensagens e áudios do WhatsApp”. Saberá também que “algumas mensagens vazadas teriam mostrado, segundo os autores da série de reportagens publicada pela Folha de S. Paulo, que o ministro Alexandre de Moraes agiu de forma informal no Tribunal Superior Eleitoral, fora dos trâmites normais”. Quem lê a Revista Oeste compreende que foi muito mais que isso. Textos e áudios atestam que um ministro do Supremo atropelou barreiras legais para forjar provas que incriminassem alvos do seu furor persecutório. Com a ajuda de juízes auxiliares e funcionários da Justiça, o Beria à brasileira mostrou-se mais espaçoso que o original soviético. 

Moraes escolhia pessoalmente tanto o alvo da caçada quanto o delito que lhe seria imputado. Em seguida, escalava subordinados para a obtenção de provas que justificassem um indiciamento, um processo, uma prisão — talvez a imposição de outra tornozeleira eletrônica, o supremo fetiche. Uma das duplas mobilizadas com bastante frequência juntou o juiz auxiliar Ayrton Vieira, chefe de gabinete de Moraes no STF, e o perito criminal Eduardo Tagliaferro. Em 6 dezembro de 2022, às 18h11, Vieira encaminhou a Tagliaferro uma solicitação curta e grossa. “Vamos levantar todas essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”. Ao recado seguia-se um link do Twitter (agora X) da revista Oeste, conhecida por ser uma publicação de perfil de direita e antipetista. “Essa e outras do mesmo estilo”, acrescentou Vieira. 

Dias depois, Tagliaferro informou que, ao examinar a revista, encontrou apenas material jornalístico. Ouviu de volta a recomendação: deveria recorrer à própria criatividade. A repetição de episódios semelhantes convenceu o perito a juntar cópias dos diálogos. Em agosto de 2024, ele entendeu que chegara a hora de quebrar o silêncio e entregou parte do material ao jornalista Glenn Greenwald. Seis anos antes, o jornalista americano ganhara notoriedade ao publicar no site The Intercept a série que ficaria conhecida como Vaza Jato. Amparadas em mensagens trocadas entre integrantes da maior e mais eficaz ofensiva anticorrupção da história, as reportagens não revelaram uma única e escassa ilegalidade envolvendo juízes e procuradores federais.


A frase “use sua criatividade” virou um símbolo da perseguição promovida pelos assessores de Moraes - Foto: Divulgação/Oeste


Olhares honestos viram apenas explosões de entusiasmo dos homens da lei que já se aproximavam rapidamente de figurões dos três Poderes, alguns alojados no STF. Mas o imenso clube dos poderosos cafajestes não perderia a chance de estancar a sangria, como recomendara o senador Romero Jucá. Invasão de aplicativo alheio é crime, da mesma forma que vazamento de informações privadas. Mas o hacker que atacou a Lava Jato esperou só dois meses pela blindagem do STF. E uma liminar concedida por Gilmar Mendes impediu que Greenwald fosse investigado ou responsabilizado pelo que publicou. 

A Folha, o Estadão e a Veja juntaram-se na montagem do mais agressivo faroeste à brasileira, extravagância cinematográfica em que, ao contrário do bangue-bangue americano, os vilões é que perseguem o xerife (com a ajuda dos juízes da capital). Lula e seus asseclas saíram da cadeia. Os ladrões da primeira classe receberam de volta, uma cortesia do ministro Dias Toffoli, os bilhões orçados nos acordos de delação premiada. O Brasil ressuscitou a roubalheira impune. E o país caiu na ditadura do Judiciário. 

A Vaza Toga escancara a face escura de um juiz que conjuga com gana e prazer os verbos capturar, prender, punir, perseguir e castigar — pouco importa que os alvos sejam culpados ou inocentes. No dia 13 de agosto, uma terça-feira, a Folha de S. Paulo soltou com discrição a primeira reportagem da série batizada de Vaza Toga. Sem periodicidade definida, sem o merecido destaque em páginas nobres, sem despertar a atenção de concorrentes, a série foi logo interrompida sem explicações. Era o que Moraes esperava para abrir um inquérito sigiloso destinado a “apurar a autenticidade e a origem dos vazamentos”. Como se fosse ele a vítima.


A condenação de Jair Bolsonaro não bastou para o Primeiro Carcereiro. O perseguido da vez é Tagliaferro, refugiado na região da Calábria. Moraes pediu ao governo italiano que prendesse o antigo parceiro e o devolvesse ao Brasil. O perito foi instruído a ficar em casa,  mas já sabe que não será extraditado. Em 2010, aliás, o advogado Luís Roberto Barroso conseguiu que seu cliente Cesare Battisti, terrorista condenado pela Justiça italiana à prisão perpétua, permanecesse no Brasil como asilado. Deportado no governo Bolsonaro, Battisti confessou, ainda na pista de pouso, que fora mesmo o autor de quatro assassinatos. A coerência sugere que desaprove a extradição do exassessor de Moraes. 


Ex-chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Eduardo Tagliaferro, em pronunciamento via videoconferência na Comissão de Segurança Pública (CSP), em Brasília, DF (2/9/2025) | Foto: Saulo Cruz/Agência Senado 


Cesare Battisti com seus apoiadores brasileiros - Foto: José Cruz/Agência Brasi


Outros participantes do esquema criminoso montado por Moraes escaparam do processo aberto pelo chefe, mas não das sanções dos EUA. Três deles tiveram o visto cancelado: Cristina Kusahara, ou “Bruxa”, chefe de gabinete de Moraes no Supremo, só verá Nova York em postais. O juiz Ayrton Vieira terá de escolher outras paragens para descansar da trabalheira. Marco Antônio Vargas continua auxiliando Moraes no TSE. Convém mirar-se no exemplo de Tagliaferro. 

Concebida para investigar o uso de um posto de combustíveis na lavagem de dinheiro sujo, a Lava Jato entrou em ação em 17 de março de 2014. A prisão do doleiro Alberto Youssef levou a uma rede de atalhos e trilhas que, devassadas com coragem e competência pela força-tarefa baseada em Curitiba, expuseram ao mundo o inverossímil escândalo batizado de Petrolão. Passou de R$ 100 bilhões a roubalheira promovida por larápios infiltrados no comando da Petrobrás, na direção das oito maiores empreiteiras do país, na cúpula dos três Poderes e na direção de partidos políticos. Sem contar a ladroagem promovida em outros países pelas ramificações da quadrilha incumbidas de negociatas internacionais.


Ex-presos na Operação Lava-Jato | Foto: Montgem Revista Oeste/Divulgação 

Lula voltou à Presidência. Os gatunos de estimação seguem soltos. O PCC não para de crescer. Moraes está de olho em Tagliaferro. Certamente lê os mesmos jornais e revistas recomendados por Barroso. 

Augusto Nunes e Eliziário Goulart Rocha - Revista Oeste