A tragédia política de nosso tempo não está apenas nos tiranos de toga ou nos burocratas que se acreditam deuses, mas nos governados que desejam um dia ocupar o seu trono
“A democracia, tal como a praticamos, centralizadora, regulamentadora e absolutista, mostra-se, portanto, como o período de incubação da tirania.” (Bertrand de Jouvenel)
“A democracia não é o oposto da ditadura. É a causa dela.” (Georges Bernanos)
H á um século e meio, Benjamin Constant — o liberal suíço, não o positivista brasileiro — já havia antecipado uma das características fundamentais da política partidária moderna. Em seu Cours de Politique Constitutionnelle, descreveu o problema com tal presciência que quase se poderia incluir parte da assim chamada direita brasileira contemporânea entre seus exemplos empíricos. Nas palavras de Constant: “Os homens de partido, por mais puras que sejam suas intenções, sempre se recusam a limitar a soberania [do governante]. Consideram-se seus herdeiros e tratam de cuidar, mesmo na mão dos inimigos, de sua propriedade futura.”
A lição remete à grande obra de Bertrand de Jouvenel, O Poder: história natural de seu crescimento, na qual o autor aponta para uma progressiva “cumplicidade geral na expansão do Poder”. Para o pensador francês, a modernidade criou um paradoxo político: ao abrir o acesso teórico ao Poder para todos, dissolvendo a figura visível do soberano — o rei que governava em nome próprio e cuja autoridade podia ser reconhecida e combatida —, instituiu-se uma forma nova e muito mais eficaz de dominação. A tirania passou a vestir o disfarce da impessoalidade, operando sob o manto da abstração rousseauniana da “vontade geral”, enquanto a sociedade, fascinada pela promessa de Poder rotativo, tornou-se cúmplice de sua própria sujeição. Cada cidadão, vislumbrando a chance de um dia se tornar “autoridade”, perdeu o impulso de contestar as engrenagens do sistema, preferindo preservá-las para eventualmente colocá-las a seu serviço.
Essa ficção — segundo a qual o Poder não tem rosto, e o Estado é apenas instrumento neutro da coletividade — é talvez a mais eficaz invenção da modernidade política. É também o fundamento psicológico de toda servidão contemporânea. Pois, quando o Poder deixa de ser percebido como relação entre pessoas (governantes e governados), torna-se muito mais difícil resistir-lhe. Ele passa a ser visto como algo natural e inevitável, uma força quase física, a exemplo da gravidade. E, por óbvio, só um insensato se oporia a uma lei natural.
A tese de Jouvenel oferece a chave para compreender um fenômeno particularmente brasileiro: a dócil submissão de parte da direita partidária ao regime juristocrático que, desde 2019, consolidou um estado de exceção sob o pretexto de defender a democracia. Paradoxalmente, embora vítima preferencial desse sistema, essa mesma direita revelou-se também uma de suas principais cúmplices. Diante dos abusos de Alexandre de Moraes e da conversão do Supremo Tribunal Federal em comitê central de governo, figuras como Ciro Nogueira, Gilberto Kassab e o próprio Tarcísio de Freitas não apenas se calaram, mas se esforçaram para cultivar boas relações com o novo clero togado. “A gente não briga com Alexandre de Moraes. A gente se une a ele”, declarou o governador paulista, em frase que sintetiza o espírito de colaboração passiva que se espalhou entre os que deveriam, ao menos em tese, opor-se ao arbítrio. Nem mesmo Jair Bolsonaro, possivelmente convencido por advogados ansiosos por preservar uma relação amistosa com a elite togada, escapou da tentação de pedir permissão para fazer uma piadinha reverente com seu algoz, na vã esperança de colher sua boa vontade.
Comecei com Ciro Nogueira porque ele representa a forma mais acabada desse espírito. Líder do Centrão, entendeu como poucos o valor de adaptar-se ao humor do Poder vigente — ora aliando-se ao lulopetismo, ora ao bolsonarismo, mas sempre com a mesma disposição “pragmática” de garantir o seu quinhão. Seu alegado realismo político, que muitos tomam por esperteza, é na verdade o índice mais claro da cumplicidade com o Poder de que fala Jouvenel. Para alguém como Nogueira, o Poder é puramente uma técnica, um objeto que políticos profissionais de sua safra acreditam ser capazes de manipular ao bel-prazer, quando, na verdade, são inteiramente manipulados por ele.
Gilberto Kassab, por sua vez, é um sintoma da mesma doença: a acomodação sistêmica. Sua habilidade de estar sempre presente, ainda que discretamente, em todos os governos mostra a perfeita assimilação da lógica moderna do Poder: a ideia de que o Estado é um condomínio de interesses, não um campo de disputa entre princípios e visões de mundo. Para Kassab, como para tantos outros, “governabilidade” não significa a manutenção da justiça ou da ordem constitucional, mas apenas o funcionamento contínuo da máquina, qualquer que seja o operador. Daí a facilidade com que aceita a expansão da autoridade judicial: o importante é que o sistema continue a funcionar, mesmo que à custa das liberdades civis.
A coisa não melhora quando consideramos Tarcísio de Freitas. Ele é o político que, em tese, deveria encarnar o legado disruptivo e antissistema do bolsonarismo, mas acabou representando a tragédia de uma direita positivista-tecnocrática, cuja crença pueril é redimir o Leviatã via eficiência. Sua frase sobre “unir-se” a Alexandre de Moraes não deve ser lida apenas como uma rendição tática, mas como a confissão de fé numa concepção gerencial de Poder. Para Tarcísio, como para tantos tecnocratas modernos, a política é um problema de administração, e a justiça, de “coordenação institucional”. Nesse horizonte, o arbítrio judicial não é retratado como um mal intolerável, mas como um “excesso de protagonismo” a ser calibrado — uma anomalia que o bom gestor deve resolver com diálogo e respeito institucional.
Eis por que, à luz de Jouvenel, não seria correto reduzir o fenômeno a mero produto de covardia ou hesitação pessoal — embora esse fator também contribua para o problema. Ele é consequência lógica de uma mentalidade que, em vez de encarar o Poder como princípio a ser limitado, toma-o por instrumento a ser conquistado. Carente de cultura política, a direita brasileira é condicionada a ver no mandato e no cargo estatal os meios exclusivos de ação. Assim, o problema seria menos o mecanismo em si — a hipertrofia do Judiciário, por exemplo — e mais o fato de estar sendo usado pelo adversário. A esperança secreta é que, uma vez de volta ao comando, tudo possa ser refeito, mas sempre dentro do mesmo sistema. É essa ilusão que Jouvenel descreve como a cumplicidade geral em favor do Poder.
A situação piora quanto mais formalmente democrático for o regime, tornando-se mais fácil ao Poder expandir-se, uma vez que a luta política, em vez de limitar a autoridade, apenas multiplica seus canais. Ao prometer a todos uma virtual fatia do mando, o sistema transforma potenciais adversários em cúmplices. O parlamentar que hoje se indigna com a censura crê, no fundo, que amanhã pode dispor do mesmo instrumento para silenciar o adversário. O ministro que se cala diante de uma prisão arbitrária sonha secretamente com o dia em que poderá ordenar uma. O resultado é o triunfo de uma moral de servidão voluntária, travestida de prudência institucional. Daí o esforço contínuo para manter acesa a chama da esperança eleitoral. Daí as recorrentes manifestações de respeito às 'instituições' da 'justiça', ainda que já esteja claro aos olhos do mundo que ela não passa de um disfarce mal-ajambrado para o ativismo radical de burocratas não eleitos.
O fenômeno é agravado pela natureza engessada e centralizada da política brasileira. Por uma deformação estrutural do nosso sistema (bem pouco) representativo, a proximidade com o Poder sempre substitui a convicção, e o cálculo eleitoreiro anula invariavelmente toda consideração de princípio. Nesse contexto, o tão propalado “pragmatismo” — em verdade, um eufemismo centrista para rendição — tornou-se a virtude suprema da oposição nacional. A fortaleza torna-se imprudência, e a pusilanimidade, sabedoria. Sob essa capa alegadamente respeitável, o Poder cresce impessoal e anônimo, como descreve Jouvenel, enquanto todos disputam um lugarzinho sob sua sombra, posto que humilhante.
Nesse cenário, a própria ideia de “oposição” se enfraquece e perde
substância. Afinal, entre se opor ao Poder e cortejá-lo, a direita
“pragmática” brasileira — mui esperta e maquiavélica, claro está — opta sempre pela segunda atitude. O efeito cumulativo é devastador, pois o Poder se torna tanto mais irredutível quanto mais se lhe concede. A esperança de “unir-se” a ele, de negociar com ele, é precisamente o que o alimenta. Como demonstra Jouvenel, o Poder cresce pela adesão dos que sonham em possuí-lo e que, portanto, o reverenciam mesmo quando são suas vítimas preferenciais. Todo pacto com o Poder é um pacto faustiano — um acordão em prol da saúde do “Príncipe deste mundo”.
No fundo, a tragédia política de nosso tempo não está apenas nos tiranos de toga ou nos burocratas que se acreditam deuses, mas nos governados que desejam um dia ocupar o seu trono. O poder moderno sobrevive dessa esperança mesquinha e igualitária: a de que todos possam mandar, desde que aguardem a sua vez. É essa ilusão democrática que impede a rebeldia e perpetua o despotismo. Como ensinou Jouvenel, o Poder não cresce apenas pela violência dos que o exercem, mas sobretudo pela covardia dos que o admiram. Enquanto a direita brasileira continuar a sonhar com o dia em que poderá controlar o monstro em vez de destruí-lo, continuará, ainda que de joelhos, a ser sua serva mais fiel.
Flávio Gordon - Revista Oeste