Símbolo de estabilidade numa região que quase sempre optou por políticas de Estado grande, o país corre o risco de rumar para o fiasco econômico
Quando o Chile aprovou em plebiscito realizado em outubro do ano passado uma Assembleia Constituinte para mudar sua Constituição, escrevi um artigo alertando para o perigo que o país corria, e que isso abria espaço para mudanças revolucionárias negativas. À época, o presidente Sebastián Piñera afirmou que “a cidadania e a democracia triunfaram” em seu país. Ele acrescentou: “Hoje demonstramos novamente a natureza democrática, participativa e pacífica do espírito dos chilenos e da alma das nações honrando nossa tradição de República”.
Há controvérsias. Na verdade, muitos querem “se vingar” do fato de a Constituição atual ser legado do regime Pinochet. Esse foi um dos pretextos das manifestações violentas que tomaram e incendiaram as ruas de Santiago antes, e que criaram o clima para a alteração constitucional. Piñera cedeu à pressão da esquerda radical, eis o fato. E, como eu concluí na ocasião, é ingenuidade imaginar que não teremos mudanças populistas no processo.
De fato, o que vemos agora é a realização desses temores. Antes de entrar no mérito da questão, porém, cabe destacar o sucesso econômico da era Pinochet, sem que isso signifique qualquer justificativa de seu regime político. Ninguém precisa defender a ditadura para reconhecer o efeito positivo de seu liberalismo econômico. O Chile despontou para se tornar o país mais próspero da região, e isso se deve diretamente às reformas adotadas pelos economistas liberais de Chicago naquela época.
O Chile desde então foi o símbolo de maior estabilidade na América Latina. Nem os governos de esquerda, inspirados pela social-democracia, ousaram mexer nas “vacas sagradas” herdadas dos liberais. As privatizações, inclusive da Previdência, permitiram um nível de investimento produtivo sem igual na região. O Chile virou um caso de sucesso estudado nas universidades norte-americanas. O grau de liberdade econômica, bem maior que o dos vizinhos, permitiu um avanço diferenciado.
O sucesso, porém, plantou as sementes do fracasso, e hoje uma nova geração, sem entender o que tornou possível o avanço relativo, quer mais e mais por meio do Estado. A narrativa da esquerda ajudou a ludibriar os mais jovens, como se o “neoliberalismo” fosse o responsável pelos problemas, pela desigualdade. Claro que o modelo nunca foi perfeito, pois não existe perfeição possível em política. Mas todo problema, real ou imaginário, passou a ser colocado na conta do tal “neoliberalismo”. O Chile começou a agir como a típica criança mimada, que bate o pé no chão demandando mais, sem compreender como os pais precisam trabalhar para pagar a fatura.
O foco deveria ser no nível absoluto de pobreza, mas a esquerda aposta pesado na diferença entre ricos e pobres, pois assim mobiliza com base na inveja, no ressentimento. E foi o ressentimento que tomou conta das ruas chilenas no final de 2019, culminando em igrejas incendiadas e uma onda de violência. O ressentimento manipulado por oportunistas, vale frisar. É verdade que não havia um rosto por trás das “manifestações”, mas a esquerda naturalmente já tinha se “solidarizado” com os “manifestantes”. Era uma forma de atacar o governo do presidente liberal, e também um empresário bilionário. Tem método.
E deu certo. “Os comunistas sempre souberam chacoalhar as árvores para apanhar no chão os frutos. O que não sabem é plantá-las”, disse Roberto Campos. A esquerda jurássica latino-americana vive de plantar vento para colher tempestades. Eventualmente chega a celebrar a própria tempestade natural, como fez uma deputada do Psol ao saber que o símbolo de uma grande varejista brasileira, uma réplica da estátua da liberdade, tinha sido derrubado pela passagem de um ciclone.
Segundo dados do Banco Mundial, entre 1992 e 2009, 60% dos chilenos conseguiram um upgrade de uma classe social para outra mais alta. É natural que as pessoas esperem que esse processo de melhora continue para sempre. Em vez de compreender o processo de mudanças e defender reformas, a esquerda chilena optou pelo caos, e aqui reside talvez o maior erro de Piñera: ele cedeu. Churchill já advertia que não é possível negociar com um tigre com a cabeça dentro de sua boca. Não dá para afagar uma hiena faminta em busca de paz.
O mérito individual sai pela janela quando a igualdade coletivista arromba a porta
Claro que politicamente é compreensível querer acalmar os ânimos em busca de uma trégua, mas o custo pode ser muito alto ao longo do tempo. A Colômbia só conseguiu saltar de patamar mesmo quando teve um governo de direita com coragem de efetivamente enfrentar os narcoguerrilheiros das Farc. Convidar extremistas para um chá das 5 pode ser fatal. E Piñera achou que era viável domar as feras com a sinalização de mudanças profundas e estruturais por meio de uma nova Constituição. Era claro que isso seria entendido como sinal de fraqueza, como uma oportunidade imperdível por parte dos socialistas.
O ponto não é que alterar a Constituição seja necessariamente algo ruim. Era natural que os chilenos buscassem uma nova Constituição da era democrática. Mas fazer isso nas circunstâncias de uma convulsão social produzida por radicais era pedir para contratar um enorme problema. Nesse cenário, a escolha dos chilenos, que poderia ser a de reformar o modelo liberal, buscando aperfeiçoá-lo, acabou sendo a de revertê-lo, inflando o Estado. O perfil da Assembleia Constituinte aponta para esse caminho, o que é péssimo para o futuro dos chilenos. Seus vizinhos conhecem bem o estrago que um Estado hipertrofiado costuma causar.
Em uma assembleia de 155 constituintes, a coalizão de Piñera, a Chile Vamos, de direita e centro-direita, conseguiu 37 cadeiras. Foi o melhor desempenho individual de um bloco partidário, mas de pouco adiantará. A coalizão de esquerda Apruebo Dignidad elegeu 28 constituintes, e a coalizão de centro-esquerda Lista del Apruebo terá 25 representantes — juntos, os dois blocos já superam o Chile Vamos. Na capital, Santiago, o prefeito Felipe Alessandri, cujo partido é integrante do Chile Vamos, perdeu a reeleição para a vereadora Irací Hassler, do Partido Comunista.
Até as regras para a escolha dos constituintes, com cadeiras respeitando a igualdade de gênero e os povos originários indígenas, já foram fortemente influenciadas pelo Zeitgeitst e consideradas de “vanguarda” pela esquerda. A política de identidades tomou conta já na largada do processo. Se a Constituição “cidadã” do Brasil, aprovada um ano antes da queda do Muro de Berlim, foi chamada de Constituição “besteirol” por Roberto Campos, a nova Constituição chilena já merece a alcunha de Constituição do “lacre”. A esquerda está aplaudindo, em polvorosa, mas o resultado será decepcionante ao extremo.
O modelo já largou produzindo efeitos inesperados. As eleições trouxeram resultado de forte participação política feminina, fato que terminou em onze mulheres cedendo seus lugares a homens. Tudo isso para garantir o cumprimento da lei que determina a paridade de gêneros entre os representantes da Assembleia. O mérito individual sai pela janela quando a igualdade coletivista arromba a porta. É como se o gênero fosse o principal fator para definir escolhas políticas sensatas. Quem apostou nisso com nossa primeira “presidenta”, fechando os olhos para as características individuais, pagou um elevado preço.
Enfim, o tempo dirá se a escolha dos chilenos foi acertada ou não, mas arrisco prever que será um fiasco. Claro que é possível mexer em time que está ganhando, mas é preciso fazê-lo com cautela e prudência. Tais virtudes estão ausentes no atual ambiente chileno, tomado por radicalismo. E assusta pensar que essa “revolução” esteja ocorrendo justamente num governo dito liberal. O perfil meio tucano de Piñera pode ser justamente parte do problema aqui. Faltou mais firmeza ao enfrentar baderneiros que “argumentavam” por meio de coquetéis molotov.
Revista Oeste