Meu instinto brasileiro de desconfiança, pois vivo num país de ladrões da coisa pública, acendeu a luz amarela na medida em que os nossos múltiplos “governos” foram autorizados a adquirir sem licitação, e com a mais justa urgência, remédios, aparelhos de respiração, máscaras e a construir hospitais e outras facilidades em função da expansão da covid-19. Falou em suspender licitação, eu imediatamente pensei em corrupção. Lamentavelmente, não deu outra.
Mencionei “governos”, mas poderia invocar o modo como atuam: por meio dos tradicionais conselhos e comitês. Esses coletivos de elite projetados para que as responsabilidades sejam diluídas e se esvaziem no velho jogo de empurra acusatório e “dentro da lei”. A coletividade de um conselho (ou comissão) dissolve contabilidades e protagonismo individual de modo que todos se salvam. É, portanto, comum no âmbito administrativo: o nível federal joga a responsabilidade para o estadual e este ao municipal que a empurra novamente para “cima” de modo que, com o passar do tempo, o engavetamento ou o pedido de vistas dos inquéritos abertos dentro do nosso legalismo aristocrático evaporem ou sejam engavetados.
Esses mecanismos impeditivos de atribuição de responsabilidade são parte estrutural no nosso sistema político-legal. Eles garantem que os nossos eleitos invertam seus papéis num regime democrático já que, devidamente “empossados”, eles deixam de ser nossos servidores e se tornam os que lucram com o nosso trabalho. Somos alvos de suas promessas como candidatos apenas para sermos usados e abusados depois que esses “eleitos” ocupem seus cargos quando então (com raras exceções) lucram e, como de uma “classe burocrática” que detém o poder de legislar e de (deslegislar), trabalham mais para a sua hegemonia e seus interesses do que para quem os elegeu. O investimento inconsciente na ambiguidade e na incoerência deixa a nu um sistema que corrói o regime democrático, desmoralizando o seu processo eleitoral!
Essa é uma das resistências mais óbvias para quem vai ao fundo do lamaçal da polícia brasileira neste momento no qual rondamos o suicídio democrático em paralelo a uma pandemia. Esse fato não previsto por nenhum dos muitos “Joãos de Deus” salvacionistas, que são parte e parcela da nossa concepção de mundo. Uma visão marcada pela imensa intenção – tanto à direita quanto à esquerda – de não “mexer” num “Estado” que vale mais para uns do que para todos. No Brasil, um Marx comunista foi virado pelo avesso, mas poucos têm consciência desse movimento.
O resultado, em meio à crise permanente, é o asqueroso roubo de equipamentos médicos de primeira hora pelas “autoridades administrativas” num habitual gangsterismo de família e compadrio, como é normal e banal no nosso sistema político.
Enoja, aos 83 anos, testemunhar essa iniquidade que rouba dinheiros, vidas e, além disso, confiança e esperança para não falar na total marginalização do sistema democrático. É contra esse asco que devemos resistir, já que ele é o núcleo da nossa antidemocracia.
Ora, se quem rouba dos nossos doentes são precisamente os eleitos em disputas regradas por todos os múltiplos tribunais cujos vocais não perdem a oportunidade de nos dar aulas de democracia, pois eles confundem sentenças com discursos, estamos todos envolvidos numa perversão. Elegemos quem logo vai roubar recursos públicos ou, pior do que isso, vai tentar realizar um republicanismo absolutista invertendo (ou traindo) suas promessas de campanha.
Tal reação seria o fim da democracia, ou o começo de uma maior compreensão do nosso papel como cidadãos? A prova do pudim está em comê-lo, disse num texto célebre Karl Marx. No nosso caso, comemos a ponto da indigestão o pudim da direita – um liberalismo sem competição e totalmente legalizado, tal como ocorria no velho Portugal das corporações de ofício –, mas (entrementes) também provamos em altas fatias o bolo da esquerda lulopetista. A prova é clara: comemos tanto de um lado quanto de outro o mesmo pudim. Hoje, porém, sentimos a sua amargura...
O Estado de São Paulo