quarta-feira, 23 de outubro de 2019

"Pensando alto como todo mundo", por Roberto DaMatta

Quando você acabar de ler o jornal ou de não ler nenhum jornal como, aliás, me afirmam seriamente, balançando enfaticamente a cabeça, muitos colegas e alguns dos meus mais estimados amigos – “Não leio mais nada! Deixei de assinar a revista X, Y e Z! Nem olho as manchetes dos jornais!”– não pense em ir embora desse “Brasil” ali estampado. 
Não deixe que o clima político-fuxiqueiro criado pela péssima performance de Jair Bolsonaro e o ressentimento dos que quebraram o País estraguem o seu humor e o seu dia. Sei que isso é muito difícil de realizar, sei que parece haver uma trama do Diabo para desfazer o Brasil como um país confiável como todos esperamos – ou esperávamos... Mas, por favor, em vez de ficar “muito puto da vida” não ligue o seu “foda-se”. Faça como o Dr. Bob, o fundador, em 1935, com o investidor Bill, do AA (Alcoólicos Anônimos). Dê o primeiro passo: transforme sua justa indignação em humildade. 
Ouça o Dr. Bob: “A humildade é o silêncio perpétuo do coração. É jamais estar descontente, contrariado, irritado ou ofendido. É não se surpreender com qualquer coisa feita contra mim, mas sentir que nada é feito contra mim. A humildade significa que quando eu for repreendido ou desprezado, eu tenho um lar abençoado dentro de mim onde posso entrar e fechar a porta, ajoelhar-me em frente do meu Pai em segredo e estar em paz em meio a um profundo mar de calmaria, quando tudo ao meu redor está aparentando agitação.”
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A humildade de admitir os enganos e a convulsividade humana, pois sem repetição não há costume, hábito ou padrão, ajuda a “dar o primeiro passo”. Ou seja: admitir a necessidade da autorreflexão que conduz a um autoconforto e a uma consciência mais abrangente nos segura e ancora. Sei que isso é muito complicado de fazer no Brasil porque não aprendemos a ficar sós nem a cuidar de nós mesmos conforme eu reitero nos meus escritos.
É mais fácil pensar-se a si mesmo como uma entidade individual e responsável por suas ações de modo exclusivo, sem contar, depender ou culpar ninguém na cultura americana do que, neste Brasil, onde nós atrapalhamos nossos filhos e eles também nos atrapalham, porque nossas relações são mais importantes que nossos desejos e projetos individuais. Sobretudo, como estamos testemunhando, quando ocupamos uma posição singular ou exclusiva no sistema, como é o caso do capitão Bolsonaro, hoje investido num papel crítico como o de “presidente da República”.
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A vida adulta se mostra nos papéis sociais marcados por privilégios, mas também e, sobretudo, por deveres. Penso imediatamente no meu calado pai e quando fui transformado em pai, no nascimento o meu primeiro filho, e virei marido-pai-trabalhador-professor. Cada um desses papéis invoca cenários sociais singulares, direitos e deveres complexos e muitas vezes paradoxais. E papéis complementares, igualmente importantes. O de marido é complementado pelo de esposa (e vice-versa); o de pai pelo de filho; o de trabalhador pelo de empregador, e o de professor pelo de aluno. Cada qual tem um palco ou um drama e, por isso, há uma exigência surda ou gritada para que sejam cumpridos à risca, com esforço e bom senso. Pois em cada um deles há uma pauta ou um entrecho como ocorre no teatro, conforme aprendi e como Shakespeare na sua peça As You Like It (como gostais ou como quereis, na sua tradução).
Quando você entra num papel há um ritual de passagem que reafirma a sua consciência dos deveres e direitos neles implicados. O mestre de cerimônia nos declara marido e mulher; o médico ou a parteira nos comunica que somos pais; o diploma nos garante a profissão que legitima um tipo de trabalho e, com ele, um honesto ganha-pão. 
Papéis públicos (ou “políticos”) têm implicações coletivas e são preenchidos com mais solenidade. O de presidente, de papa e de rei são papéis singulares: isolados e solitários ocupados por uma só pessoa. Compreendem inúmeros direitos e, consequentemente, uma tonelagem de responsabilidade e de deveres porque afetam multidões e povos. 
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Todos os papéis que asseguram a reprodução e manutenção de um corpo social são permanentes e fixos. Os atores passam, os papéis ficam. Os atores fazem parte do lado humano e mortal do mundo; os papéis que eles eventualmente ocupam, todavia, são perpétuos.
“O Rei está morto, viva o Rei!” diz a fórmula que afirma a continuidade da realiza em sociedades monarquias quando um monarca falece... 
Quando um presidente é tirado do palco súbita e tragicamente, como ocorreu com John F. Kennedy em novembro de 1963, providências imediatas são tomadas para que esse papel fosse preenchido. É que o cargo (e a carga) de presidente, como o de rei, constitui a única esfera de poder “pessoalizado” nos sistemas constituídos pelo enlace das instâncias legislativa, judiciária e executiva nas suas interdependências.
Todo papel supremo é uma “corporação solitária”, como dizia Henry Maine. Ademais, há a entrada imponente do papel pelo ator. Tal investidura ou inauguração que chamamos significativamente de “posse” no Brasil, implica, em todo lugar, num juramento. O juramento demonstra a humildade bem como a consciência das demandas e compromissos investidos no papel que, sendo público, pertence a todos. Ele deve ser desempenhado visando o bem coletivo – não pode se pessoalmente apropriado. Muito pelo contrário, deve ser exercido com o olho no público que é a sua fonte de legitimidade.
Justo o que Jair Bolsonaro e sua dinastia precisam aprender. 

O Estado de S. Paulo