terça-feira, 29 de outubro de 2019

"O pequeno Gatsby", por João Pereira Coutinho

Um dia, daqui a muitos anos, vou contar esta história aos meus netos: em outubro de 2019, momentos antes de partir para Washington, fui a um cinema de Lisboa. Objetivo: assistir ao mais recente filme de Woody Allen, “Um Dia de Chuva em Nova York”.
Os meus netos, que serão mais inteligentes do que o avô, dirão: “Mas não era possível assistir ao filme nos Estados Unidos?”. Eu, com o meu cachimbo (vou começar a usar cachimbo na virada dos 50), vou sorrir, cofiar a barba branca e responder: “Meus queridos, em 2019, para assistir a um filme desse diretor americano, era preciso viajar para a Europa.”
E então contarei como o novo macarthismo de Hollywood tinha silenciado um dos seus criadores, para o reabilitar quando já era demasiado tarde.
Woody Allen em preto e uma ponte em vermelho no fundo
Angelo Abu/Folhapress
Mas nessa conversa imaginária com os meus netos imaginários não perderei muito tempo com a “caça às bruxas” das primeiras décadas do século 21. Também falarei do filme —uma comédia romântica, aparentemente ligeira, com atores que, depois da rodagem, também se afastaram de Woody Allen com náusea. Exatamente como os seus antepassados se afastavam dos comunistas, reais ou imaginários.
Um deles é Timothée Chalamet no papel de Gatsby Welles. Ele é um Woody em ponto pequeno, estudante universitário com pouca vocação para os estudos, que vegeta na sala de aula de uma universidade de 
segunda categoria e prefere gastar o seu tempo (e o seu dinheiro) nas mesas de pôquer.
Gatsby tem um amor: Ashleigh Enright (Elle Fanning), uma moça do Meio-Oeste que escreve para o jornal da universidade e que consegue uma entrevista com um diretor de cinema famoso.
A entrevista é em Manhattan e Gatsby, um nativo da cidade, acompanha Ashleigh na viagem e decide fazer um roteiro minucioso, luxuoso e romântico para os dois.
Dizer que nada vai dar certo seria um erro. Porque a cidade também tem os seus desígnios, como reconhece Gatsby no final, mesmo que os resultados desses desígnios não sejam aqueles que o rapaz imaginava.
Por esta descrição sumária, é fácil de compreender que não estamos em território estranho. Nem isso seria possível, sequer desejável: Woody Allen é um autor, e um autor regressa sempre ao lugar do crime.
O lugar é Manhattan, personagem de pleno direito, e o crime é particularmente caro ao cinema de Woody Allen: a tirania das ideias, a forma como elas se intrometem no caos da existência para o tentarem regular ou controlar.
Gatsby, tal como o homônimo célebre do romance de Fitzgerald, é uma vítima dessa tirania —e não apenas por preferir viver “o sonho romântico de uma era desaparecida”.
A sua idealização da mulher amada, que funciona como contraponto à sua hostilidade pela família pedante e burguesa, é uma pura construção mental, sem nenhum ponto de contato com a realidade.
O que não deixa de ser irônico: perdido na vocação, indeciso nos estudos, Gatsby é um jogador de sucesso. Será que ele não aprende que a aleatoriedade também faz parte da experiência humana? E que, tal como nos dados ou no pôquer, a má e a boa sorte podem não depender apenas da nossa vontade?
Gatsby vai aprender: “Um Dia de Chuva em Nova York” é, nesse sentido, uma espécie de “bildungsroman”, um romance de formação como em Goethe, Twain ou Conrad, transformando o jovem em adulto e obrigando-o a olhar para a vida —a mulher que ele julgava amar, a mãe que ele julgava menosprezar —com os olhos abertos.
E, já agora, a receber o imponderável, a aceitar o acaso da vida sem se refugiar no velho castelo do cinismo, do privilégio e da misantropia.
Moral da história?
Boicotar “Um Dia de Chuva em Nova York” não é um castigo para Woody Allen. Mas é um castigo para os 
americanos que ainda não enlouqueceram com a histeria inquisitorial dos novos Torquemadas —gente que gosta de fazer justiça fora dos tribunais, impedindo os compatriotas de terem contato com obras de arte manchadas pelo Mal.
Ironicamente, esses Torquemadas também são prisioneiros da tirania das ideias. Mas, ao contrário de Gatsby, desconfio que não haverá nenhum dia de chuva em Nova York para lavar as  suas almas sujas.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Folha de São Paulo