sábado, 29 de junho de 2019

"Idosos, tomem água", por Gilles Lapouge

Há quatro dias as rádios, as TVs e os jornais da França informam que faz calor. E repetem as precauções a serem tomadas: beber dois litros de água por dia, não muito gelada; não beber álcool (nem mesmo cerveja); telefonar aos amigos para avisar que você não morreu; molhar as cortinas; refugiar-se nas igrejas, museus, bibliotecas, cinemas (eis uma boa ideia).

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Pessoas tomam sol nos jardins do Trocadero, em frente à Torre Eiffel
em Paris, em 28 de junho de 2019. Temperatura bateu recordes históricos 
em diversos países europeus com a onda de calor vinda da África. 
Foto: Lewis Joly/AP Photo
Mais insistentes que a mídia são os ministros. O da Saúde nos lembra, dez vezes por hora, que o calor é um perigo, principalmente para idosos e crianças. Pobres idosos, que não se lembram de ter sede! Na TV, as legendas no pé da tela martelam as atitudes que nos ajudarão a sobreviver: beber muito líquido, ir ao cinema ou à igreja, não comer muita carne, fugir do conhaque, procurar a sombra de uma árvore.
Esses conselhos são justos e indispensáveis, mas não em overdose. Depois de quatro dias, procuramos outras informações, mas o próprio Donald Trump mal consegue chegar à capa dos jornais. De vez em quando, ele ganha numa breve nota sobre seus tuítes absurdos. Boris Johnson, provavelmente o próximo primeiro-ministro britânico, mesmo com sua grande boca, foi ofuscado pela canícula. E onde andam Putin, Madonna, Elton John, a seleção de futebol? Frente ao clima, desapareceram. Apenas o tremor de mãos de Angela Merkel veio em socorro dos famosos.
Foram necessários muitos dias para que alguns jornais, os mais antenados, olhassem além do nariz e falassem do futuro que essa canícula promete – um futuro de cores angustiantes. Na França, desde da era industrial a temperatura subiu 1,5°C. Houve duas vezes mais ondas de calor entre 1984 e 2018 que nos 34 anos precedentes.
Entre 1950 e 1960, houve apenas uma canícula. Entre 1970 e 1980, foram duas. Entre 2000 e 2010 houve sete. A frequência deve dobrar até 2050. No fim deste século, a onda de calor que hoje assola a Europa será algo comum. E se as emissões de gás do efeito estufa prosseguirem no ritmo atual, as canículas serão cada vez mais violentas e prolongadas. Elas durarão em média 60 dias e em certos anos podem chegar a 90 dias.
Segundo um meteorologista: “Não se falará mais em ondas de calor. As canículas poderão durar todo o verão. E não se limitarão ao período de meados de junho a meados de agosto (o verão europeu), como hoje. Começarão às vezes no fim de maio e podem se prolongar até início de outubro, com temperaturas às vezes de 50°C no sul da França”.
Quanto a mim, fatigado com essa viagem de ficção climática e após beber meus dois litros de água fresca (não gelada) e nem uma gota de conhaque, busco alguns motivos de esperança recorrendo à etimologia da palavra canícula. Essa palavra evoca o cão. Canícula quer dizer “cachorrinha”. Mas então, por que passou a significar grande calor?
Por causa do céu. É o nome de uma estrela muito brilhante da constelação do Cão Maior, também chamada de Sírius. A estrela Canícula desponta e dorme de 24 de julho a 24 de agosto, ou seja, na época de mais calor na Grécia e no restante da Europa. Os romanos retomaram a tradição dos antigos gregos de festejar a estrela, mas acrescentaram um novo costume: todo ano, para conter o excesso de calor, sacrificavam um cão avermelhado à Canícula.

Matar um cão? Isso não é bonito, mas enfim, era hábito naqueles tempos sacrificar um animal para afastar um perigo. E por que um cão avermelhado? Para que Sírius-Canícula, homenageada, fizesse com que na estação seguinte as uvas viessem suculentas e num lindo tom vermelho. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

O Estado de São Paulo