Ao contrário do que pensam os analistas vulgares, o resultado das eleições municipais não reduziu as chances de triunfo de um ‘outsider’
Geralmente, num sistema político polarizado, a derrota de um dos polos transfere a hegemonia temporária para o outro. A regra indicaria que, após a derrota histórica do PT, pontuada pelo impeachment e pelas imputações judiciais contra Lula, abre-se uma era de predomínio do PSDB. Uma análise convencional dos resultados das eleições municipais, nas quais os tucanos colecionam triunfos quantitativos e qualitativos, reforça a ideia de uma oscilação decisiva do pêndulo rumo ao partido de FHC. Contudo, acreditar nisso equivaleria a perder de vista o principal: a queda do lulopetismo assinala o encerramento da bipolaridade que vincou a política brasileira nas duas últimas décadas. Depois de Dilma, é o dilúvio.
O sistema político brasileiro nunca foi realmente bipolar. PSDB e PT revezaram-se no poder, mas jamais configuraram algo parecido com um sistema bipartidário. O PMDB, essa federação de partidos pragmáticos regionais, funcionou como elemento estabilizador, aliando-se ora com um, ora com o outro. A crise do sistema acarretou a multiplicação de partidos e as heterogêneas alianças parlamentares do lulopetismo. Isso que ficou conhecido como “presidencialismo de coalizão” prossegue, agonicamente, no governo transitório de Michel Temer. São os dobres de finados da “Nova República”.
As eleições municipais não devem ser interpretadas como uma vitória tucana, mas como um paradoxal triunfo da chamada “base de Temer”. A vitória eleitoral nada tem a ver com uma aprovação do governo federal, que é majoritariamente rejeitado. Nas urnas, os eleitores condenaram o lulopetismo, sufragando os candidatos antipetistas. Com raras exceções, como o Ceará controlado pelo clã dos Ferreira Gomes ou o Acre ainda sujeito à família Viana, os eleitos pertencem ao extenso arco da base governista. Ao lado das variadas circunstâncias locais, o antipetismo operou como força decisiva no ciclo eleitoral.
A crise manifesta-se nitidamente como derrocada do PT, mas atinge toda a elite política, vista como uma coleção quase indiferenciada de máfias consagradas à captura de riquezas públicas. Ao longo dos anos de oposição, o PSDB perdeu sua identidade e dividiu-se, irremediavelmente, entre três caciques hipnotizados por suas ambições pessoais. A principal conquista tucana, a eleição de João Doria, em São Paulo, não representa um triunfo do partido, mas uma vitória de Geraldo Alckmin no seu feudo interno com José Serra. Na campanha, cuja tônica foi o antipetismo, o candidato surfou na aversão pública à elite política, cobrindo-se com o manto ilusório da eficiência administrativa. O PSDB atual, repleto de figuras parlamentares ligadas às igrejas neopentecostais, pouca relação mantém com o partido de centro-esquerda fundado por Franco Montoro, Mário Covas e FHC.
O horizonte de 2018 parece distante, além de sujeito às turbulências das investigações policiais e judiciais de corrupção, que tendem a derrubar nomes notórios do núcleo governista e de suas adjacências. Entretanto, na paisagem de ruínas, não é difícil identificar os vetores políticos da disputa pelo Planalto. A “esquerda” (aspas necessárias), um campo que vai do PDT de Ciro Gomes ao PSOL, passando pelo PT, não é alternativa real de poder e usará as eleições para tentar se reinventar, unida ou dividida, após o longo período de hegemonia lulopetista. De fato, em princípio, o poder será disputado entre a “base de Temer” e a possível candidatura de um “outsider”. Eis aí uma perspectiva duplamente assustadora.
A “base de Temer” é um vasto condomínio que reúne fragmentos saudáveis da elite política a incontáveis tons de atraso, inclusive os setores ultrafisiológicos do PMDB e do “Centrão”, os deploráveis cruzados das igrejas de negócios e uma direita nostálgica do regime militar.
A sua continuidade, por meio de um candidato tucano ou de algum personagem de ocasião, representaria a tentativa de perenização do que há de mais anacrônico na política brasileira. Significaria, entre outras coisas, o enterro da oportunidade de erradicação da corrupção crônica que envenena a máquina da administração pública.
Ao contrário do que pensam os analistas vulgares, o resultado das eleições municipais não reduziu as chances de triunfo de um “outsider”. Marina Silva, a mais notória liderança com esse perfil, pode ter sucesso se optar por uma aventura baseada na rejeição generalizada aos partidos tradicionais. Porém, evidentemente, um hipotético governo nascido nesse berço, carente de estruturas partidárias sólidas, estaria condenado a extinguir-se em desastre. A difusão da antipolítica é um reflexo da crise terminal da “Nova República”, mas não uma solução para o desmoronamento do sistema político.
Dias atrás, encontraram-se Temer e FHC. O diálogo entre ambos tem algum sentido, se a meta for ajustar os ponteiros para a votação de medidas urgentes, como a PEC do teto dos gastos e a reforma previdenciária. Outra coisa é a soldagem de uma aliança estratégica, cujos sinais aparecem aqui e ali, como no apoio dos tucanos à candidatura de Marcelo Crivella. Seguindo essa rota, o PSDB confirmaria seu declínio, prendendo-se à armadilha do atraso.
Existe um amplo eleitorado órfão de representação política funcional. O Brasil sem voz defende a economia de mercado, redes adequadas de proteção social e forte prioridade para a qualificação da educação e da saúde públicas. Quer traçar uma fronteira intransponível entre a alta burocracia administrativa e as empresas estatais, de um lado, e os partidos políticos, de outro. Almeja um Estado efetivamente laico e cultiva os valores da liberdade individual e da tolerância à diversidade.
No horizonte de 2018, a emergência de uma plataforma desse tipo exige a cisão da “base de Temer” e uma profunda reunificação política de centro-esquerda. Nada disso se fará à sombra do paradigma Doria-Crivella.