Carina Bacelar - O Globo
Para Marion Minerbo, a reverência aos poderosos fortalece a prática nas instituições
A corrupção dos indivíduos pode ser encarada como um enlouquecimento: um excesso ou desmesura das pessoas, que querem ter prazer absoluto. Por isso, passam por cima da ética e de regras para levar vantagem. A psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e doutora em medicina pela USP Marion Minerbo, em entrevista ao GLOBO, explica que esse é apenas um dos sentidos da palavra corrupção na psicanálise. Segundo ela, a prática tem um sentido institucional, que se associa estuda o simbolismo ligado às instituições como o Estado e a Justiça, e aos indivíduos, que se deixam levar pela vontade de se igualar aos poderosos. Autora de artigo sobre o tema, ela explica que a subserviência da população contribui para que as instituições sejam cada vez mais corruptas.O GLOBO: Como a psicanálise define a corrupção?
A corrupção pode ser pensada e definida, do ponto de vista da psicanálise, em dois níveis: o institucional e individual. No primeiro deles, que diz respeito à política, a Justiça e a família, por exemplo, o que se corrompe é a própria lógica simbólica que sustenta a instituição. Corrompida a ordem simbólica, ela entra em crise de legitimidade. Paralelamente, a corrupção se transforma, ela própria, em uma instituição. A questão é que as instituições têm vida própria, a vocação delas é se perpetuar, e para isso aliciam o sujeito em certos aspectos psíquicos. A instituição da corrupção promete alçar o sujeito acima dos outros humanos, acima das limitações de que padecemos todos.
E o outro nível?
No nível individual, a corrupção pode ser pensada como sintoma de certo tipo de enlouquecimento, não no sentido de doença mental, mas no de "hybris", a palavra em grego que significa excesso ou desmesura. Sofrendo dessa "loucura", o homem passa a sentir que pode tudo, que não tem nada a perder nem a temer. Encontramos essa ocorrência em pessoas que têm poder político, financeiro ou simbólico, como as celebridades. E até mesmo um gerente de supermercado ou um burocrata pode se sentir poderoso frente aos seus subordinados. Para a psicanálise, ninguém enlouquece sozinho, mas em um vínculo com outros sujeitos que se posicionam frente ao poderoso de maneira reverente, subserviente, de devoção fascinada e apaixonada. É a mesma atitude que a criança pequena tem com relação aos pais. Que criança ousaria repreender seu pai quando ele passa dos limites?
O que leva, do ponto de vista psicanalítico, um indivíduo a praticar corrupção?
No plano da corrupção institucionalizada, o sujeito pratica a corrupção porque respeita um “contrato narcísico” firmado entre ele e a instituição. Nele, a instituição se compromete a lhe permitir desfrutar de um prazer absoluto, sem limites, acima, maior e melhor do que aquele que está ao alcance dos comuns mortais. Ou seja, a instituição da corrupção lhe acena sedutoramente com a possibilidade de ocupar um lugar próximo aos deuses. Já no plano individual, o homem comum pode olhar para o poderoso e imaginar que “este sim, com todo este poder, goza plenamente”. Ele vê assim porque projeta no poderoso as fantasias infantis de prazer absoluto, às quais renunciou, mas nas quais continua acreditando.
Alguma política de educação ou de formação escolar poderia evitar a prática entre a população?
No plano institucional, o representante da instituição precisa “encarnar” o lugar simbólico que lhe cabe. No plano individual, as pessoas precisam sinalizar sempre umas às outras que a lei vale para todos, inclusive para aqueles que detêm algum tipo de poder, seja político, financeiro ou simbólico. É preciso sair da posição infantil de reverência ao poderoso.
Alguns indivíduos têm mais propensão que outros à prática da corrupção? Quais?
É difícil responder a esta questão, uma verdadeira armadilha para os psicanalistas. De um lado, há pessoas que acreditam mais do que outras na possibilidade do gozo absoluto. Por uma razão ou outra, não conseguiram fazer o luto pelo paraíso perdido da primeira infância, e tendem a “projetar” esta condição justamente naquilo que imaginam ser a vida de quem tem poder. É graças a esta projeção que o poder se transforma em um fim em si mesmo. Há pessoas que projetam esta mesma fantasia em outras coisas, como casar, ter filhos, criar uma obra. Mas isto não basta, é preciso também que esta pessoa esteja em um vínculo que sinaliza de alguma maneira que ela é diferente dos outros, que está acima das limitações humanas, que merece mais do que os outros. Estas fantasias infantis, que estavam adormecidas, são “acordadas”.
É possível diferenciar pequenos atos de corrupção de grandes desvios de recursos, por exemplo? O processo que leva uma pessoa a cometê-lo é o mesmo?
Se pensarmos que a lógica emocional que determina a transgressão à lei tem a ver com a fantasia infantil de vir a gozar infinitamente, então o processo é o mesmo nos dois casos. Mas também podemos pensar que o grande corrupto é aquele que se sente acima do bem e do mal, o que talvez não seja o caso do corrupto que ainda se esconde por medo das consequências.
A corrupção chega a ser uma patologia? Tem tratamento?
Não é uma patologia, mas pode ser um sintoma, por exemplo, de um adoecimento paranoico. Paranoico é aquele que se vê como perfeito, melhor do que os outros. Ele é justo, correto, é bom, ao contrário dos outros, que são injustos, estão errados e são do mal. Se o paranoico é acusado de alguma coisa, se ofende, porque a acusação é injusta. Ao contrário, espera sempre receber o amor e o reconhecimento dos demais por sua bondade.