domingo, 27 de julho de 2014

Cem anos após a Primeira Guerra, a crise do multilateralismo

- O Globo
 
Para analistas, principal legado dos conflitos mundiais enfrenta o pior momento
 
 



GENEBRA — Era 29 de junho de 1919. Das cinzas da Primeira Guerra Mundial, o tratado de paz de Versalhes lançou uma das maiores utopias do século: a Liga das Nações, uma organização que, no ideal do presidente americano Woodrow Wilson, impediria guerras. Sem poder e cheia de contradições, a liga morreu ao não evitar a Segunda Guerra, mas teve um mérito: lançou as bases da Organização das Nações Unidas (ONU) e da atual estrutura de governança do mundo.

Hoje, cem anos depois, esta estrutura se multiplicou e guia a relação entre países com base em regras, e não mais na força, como no passado: ONU, suas agências especializadas, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e, mais recentemente, a Organização Mundial do Comércio (OMC), está sendo colocada à prova. Não por uma guerra, mas pela crise econômica e mudança na estrutura da economia global e no jogo de poder no mundo, com a emergência de novos atores, como China, Brasil, Índia, Rússia, entre outros. Alguns perguntam: é a crise do multilateralismo?


TRÊS FATORES QUE DESCONSTROEM O SISTEMA

O especialista do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri) Philippe Moreau Defarges acha que sim. E vê três razões fundamentais. A primeira: o sistema, construído e comandado pelos países ocidentais no pós-guerra, continua sob as rédeas deles. Hoje, “tem que ser alargado para incorporar países não ocidentais”.

— O presidente do FMI é sempre um europeu, e o do Banco Mundial, um americano. Talvez tenha que se colocar no comando destas organizações um chinês ou um brasileiro.

Para Defarges, o debate pautou a escolha do primeiro brasileiro e latino, Roberto Azevêdo, para comandar a OMC, que regulamenta o comércio mundial. Azevêdo assumiu num momento crítico: a OMC está num marasmo. A rodada de negociações que a OMC lançou em 2001 para abrir ainda mais o comércio internacional (Rodada de Doha) está paralisada, porque países estão preferindo buscar abertura de comércio em acordos bilaterais e regionais do que na OMC. Como admitiu Azevêdo numa entrevista ao GLOBO em 2013, para não cair na irrelevância, a instituição precisa se atualizar:
— O que temos hoje (na OMC) ainda reflete uma forma de conduzir negócios dos anos 80.

A ONU também tem sido colocada à prova na função mais fundamental: manutenção da paz e segurança no mundo. Em 2003, a intervenção no Iraque liderada pelos EUA — sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU — levou os mais alarmistas a prever o colapso do sistema. Não aconteceu, mas expôs os limites.

O Conselho de Segurança tem sido questionado pelos emergentes, como Brasil e Índia, por ter a mesma estrutura do pós-guerra, com cinco países com cadeira permanente tomando decisões cruciais: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França. A ONU começou a estudar uma reforma em 1993, mas que não resultou em nada.

Com o fim da Guerra Fria, o Conselho de Segurança da ONU ficou mais intervencionista e teve sucessos. Mais recentemente, aprovou sanções contra Coreia do Norte e o Irã por conta dos programas nucleares. Mas resquícios da Guerra Fria continuam, quando China e Rússia se uniram em 2012 para vetar uma série de ações contra o regime de Bashar al-Assad, na Síria, país que se radicalizou e que está sendo destruído por uma guerra civil.

A ONU teve notórios fracassos nas missões de manutenção de paz: não impediu o último grande genocídio do século 20, em Ruanda, e fracassou em operações na guerra da Bósnia e na Somália.
Defarges acha que, apesar de tudo, as Nações Unidas obtiveram êxito:

— A ONU é um formidável sucesso. Hoje, quando há uma crise internacional, o Conselho de Segurança se reúne: discute, debate, grita, diverge. Mas não fazemos mais a guerra. O multilateralismo está em crise, mas fez enormes progressos.

Segunda razão da crise, segundo Defarges: todas estas instituições multilaterais foram concebidas para regular a relação entre estados. Mas o sistema hoje precisa “se tornar mais democrático, onde o povo e as sociedades estejam mais presentes”. E a terceira razão: há uma crise real no mundo atual.

— Há uma crise econômica e conflitos geopolíticos importantes. Então, o sistema multilateral sofre porque não está se sustentando numa situação política e econômica internacional favorável.

O professor de política internacional Kanishka Jayasuriya, da Universidade de Adelaide, na Austrália, vê os problemas do multilateralismo hoje por outro prisma:

— O que temos não é crise ou colapso do sistema multilateral pós-guerra, mas a substituição por um leque de arranjos mais complexo e pluralístico que, às vezes, é difícil de administrar e ter coerência.

As negociações na área de mudanças climáticas, segundo Jayasuriya, são emblemáticas desta mudança. A última grande tentativa multilateral para abordar o problema desabou numa conferência da ONU em Copenhague, em 2009. Mas, para o professor, a ação dos países continuou de outra forma:

— Cada vez mais a ação está partindo de grupos e alianças entre Estados, através de arranjos com o Banco Mundial e de trocas de emissões (mecanismo para reduzir gases poluentes) entre países.

TRANSFORMAÇÃO SEM PODER CENTRAL

Na área do comércio, há o mesmo fenômeno, segundo Jayasuriya. A Iniciativa Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), um acordo de livre comércio negociado entre 12 países — dos EUA ao Japão e Chile —, tornou-se num dos principais motores da política comercial na Ásia e no Pacífico.

— A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, que também está sendo formada entre Europa e Estados Unidos, é outro exemplo de como estes acordos regionais estão cada vez mais esvaziando as rodadas de negociação multilaterais de comércio. Isso, em certo sentido, reflete esta crise do multilateralismo — enfatiza o professor.

A tese de Jayasuriya é de que há uma transformação fundamental da ordem multilateral, “mas que não está sendo guiada por nenhum tipo de poder central, como no início da Guerra Fria”:

— O que vejo emergindo é uma colcha de retalhos de instituições para gerar a ordem econômica e política globais. Não significa que instituições multilaterais, como a ONU, a OMC ou o Banco Mundial, vão desaparecer. Mas cada vez mais vão ter que existir num espaço muito mais complexo, com outras instituições e foros.