"'Este ano não vai ser igual àquele que passou'", por Luiz Werneck Vianna
O Estado de São Paulo
"Este ano não vai ser/ igual àquele que passou", cantava a antiga
marchinha de carnaval. Não vai, é certo, mas ainda estão ressoando em surdina no
novo ano as toadas que tomaram as ruas nas jornadas de junho de 2013. E, como um
encontro marcado, não há quem não espere o seu retorno, embora em diverso
diapasão, com os jogos da Copa do Mundo e o processo de uma sucessão
presidencial competitiva. Foram fundas as marcas deixadas pelo ano que passou:
além de suspender o cotidiano com as ondas de protesto das manifestações
populares, trouxe à luz novos personagens e um sentimento inédito de urgência
quanto a demandas, desatendidas, da população nos serviços públicos.
As manifestações, é verdade, cessaram, mas estão aí presentes os mesmos
motivos, o difuso mal-estar e os protagonistas de ontem. A política e os
partidos, malgrado um tumultuado esforço despendido na produção legislativa a
fim de responder ao clamor por mudanças, passado o susto pelo descontrole das
ruas mantêm distância da sociedade, o que mais se agrava por ser este um ano a
ser dominado pelo calendário eleitoral. Pior, já se reitera o vezo de um
malfadado presidencialismo de coalizão que, na forma como o praticamos, reduz o
papel dos partidos a máquinas eleitorais aplicadas à reprodução da classe
política que aí está, em detrimento do que deveria ser a busca de rumos para uma
complexa sociedade como a nossa.
Não se aprendeu nada, não se esqueceu nada. Não à toa esse dito clássico tem
sido invocado por tantos - a política está entregue, como sempre, a próceres
empenhados no escambo do horário eleitoral, especialmente no interesse das
cúpulas partidárias, conforme um deles declarou sem rebuços dias atrás em
entrevista a um importante jornal. Mas desta vez não haverá surpresa, como no
ano que passou. A Copa do Mundo tem data, assim como a têm a eleição
presidencial, a dos governadores e a parlamentar, para as quais não se deve
prever céu de brigadeiro, tal como já se entrevê.
Depois dos idos de junho muita água correu debaixo da ponte: tanto o Estado
como o governo se preveniram, em particular em política de segurança e na
tentativa de minorar as carências da população em termos dos serviços públicos,
embora não faltem à cena gatilhos novos, como, entre outros, a questão dos
presídios e a dos indígenas. E a sociedade teve tempo para investir na reflexão
sobre aqueles surpreendentes acontecimentos, como testemunha a produção
editorial dedicada a eles. Sobretudo não se mostrou insensível ao significado de
que eram portadores, qual seja, o de que estamos no limiar do esgotamento de um
longo ciclo e já maturam as condições para sua superação.
Vários sinais apontam para essa direção, o principal deles se faz indicar
pela recusa em aceitar a reiteração do padrão de discricionariedade irrestrita
na administração pública, de imemorial tradição entre nós, terreno em que o
Ministério Público se vem mostrando à altura do papel constitucional que a Carta
de 88 lhe destinou. O Poder Executivo, especialmente o municipal, em alguns
casos significativos, vem acompanhando essa tendência, abrindo canais de
participação para a população envolvida em temas do seu interesse. O julgamento
no Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Penal 470, com a condenação de
importantes quadros do partido no governo, exerceu severa pedagogia quanto aos
valores republicanos.
São mutações relevantes e em todas elas se registram ecos das manifestações
espontâneas de junho que confirmaram, na tradução livre que imprimiram em suas
faixas e seus galhardetes, o sentido visado por seus autores institucionais. De
uma perspectiva mais larga, nem sempre perceptível a olho nu, essas são
transformações que repercutem em cheio no modelo nacional-desenvolvimentista,
latente na esquerda brasileira, desentranhado pelo governo do PT do baú da nossa
História como resposta à crise financeira mundial de 2008, inclusive com
elementos que recebeu da sua versão sob o governo Geisel, que depende
visceralmente de um modelo político decisionista.
De passagem, registre-se que tal modelagem, na democracia da Carta de 88, vem
sendo reproduzida pelas vias abertas pelo presidencialismo de coalizão à
brasileira, ora ameaçado pela votação ainda em curso no STF de uma ação proposta
pela Ordem dos Advogados do Brasil com a finalidade de interditar o
financiamento das competições eleitorais por parte de empresas. Sem a escora
dessa peça, uma de suas vigas-mestras, o presidencialismo de coalizão somente
poderia persistir em torno de programas, o que supõe ampla deliberação e adoção
de rumos compartilhados, minimamente consensuais. Aí, mais um indicador de
exaustão do ciclo a que ainda estamos submetidos.
A sensibilidade a esse novo estado de coisas está em todos, até mesmo, se
valem os sinais, na presidente Dilma Rousseff e em sua equipe econômica, de que
é exemplo sua decisão de comparecer ao encontro de Davos. Os fortes abalos da
crise de 2008, que ainda sentimos, se importaram em ruínas e perdas materiais,
têm devolvido vigor, aqui e alhures, a muitas lições esquecidas, como as de
Marcel Mauss, Karl Polanyi e Antonio Gramsci, tão diferentes entre si, mas
convergentes nos seus propósitos de regular o mercado pelo direito, por padrões
eticamente orientados e pela política democrática.
Mudanças no modo de interpretar o mundo são influentes e, no caso, um livro
recente chama a atenção por sua energia e coragem intelectual. O Mistério e o
Mundo - Paixão por Deus em Tempos de Descrença (Rio de Janeiro, Rocco, 2013), da
teóloga católica Maria Clara Bingemer, é mais um desses sinais, pois, longe de
um diagnóstico desalentado, o que ela apresenta aos seus leitores é um chamado,
na estrita linguagem da sua confissão religiosa, para uma ação política
transformadora. De verdade, 2014 é um ano novo.