segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Quem recebe bolsa do governo não deveria poder votar

 

Nota da edição:

Nos EUA, a última paralisação do governo federal trouxe à tona o debate sobre as pessoas que recebem uma espécie de “bolsa família” do Programa Nacional de Assistência Alimentar (SNAP na sigla em inglês) do governo. Esse benefício, que consiste em vouchers que as pessoas podem utilizar para a compra de alimentos, ficou popularmente conhecido como “food stamps” e foi cortado suspenso durante a paralisação. O artigo a seguir traz uma reflexão importante sobre esses e outros recebedores líquidos de dinheiro estatal que pode ser pertinente ao debate brasileiro.


A recente paralisação do governo federal nas últimas semanas trouxe à tona o custo integral de muitos programas governamentais, incluindo o programa de vale-alimentação (food stamps). Muitas pessoas — especialmente aquelas que não acompanham de perto os gastos do governo federal — ficaram chocadas ao descobrir que um em cada oito americanos — 12% da população — recebe os chamados food stamps. Isso equivale a aproximadamente 42 milhões de pessoas. Além disso, a maioria dos beneficiários do programa recebe também outras formas de “assistência social” do governo.

Para muitos, essas estatísticas que circulam pelas redes sociais e entre podcasters serviram para destacar o tamanho impressionante da parcela da população americana que recebe dinheiro estatal como parte substancial de sua renda.

Isso levanta uma pergunta importante: se uma parte significativa da renda de uma pessoa vem de impostos, essa pessoa deveria ter o direito de votar para garantir a si mesma ainda mais dinheiro vindo dos impostos?

Alguns acreditam que não. Uma mulher, por exemplo, recebeu 64 mil curtidas ao afirmar: “Eu não acho que essas pessoas deveriam votar. Honestamente, como alguém pode votar livremente quando está sendo comprado?”

Ela está certa.

Essa é, no mínimo, uma posição polêmica. Ainda assim, muitas das pessoas que reagem escandalizadas à ideia certamente também considerariam algo ruim se um político votasse “sim” para conceder um contrato governamental à própria empresa dele. Isso ocorre porque muitos compreendem que estar em posição de votar para direcionar a si mesmo mais dinheiro dos contribuintes configura um claro conflito de interesses. Historicamente, esperava-se que um membro de um conselho municipal ou legislatura se abstivesse de votar quando pudesse se beneficiar financeiramente de sua própria decisão. Entende-se que alguém que vota nessa situação não está votando “livremente”, mas sim enviesado a favor do próprio enriquecimento às custas dos demais.

No entanto, poucas pessoas refletem duas vezes quando um eleitor deposita seu voto em um político que prometeu lhe entregar mais dinheiro dos contribuintes. Às vezes, em nível estadual, os próprios eleitores votam para se enriquecer diretamente por meio de iniciativas populares e referendos. E nos dizem que tudo isso é perfeitamente aceitável, porque votar seria, supostamente, uma espécie de direito sagrado.

Quantas pessoas vivem às custas dos contribuintes?

Quantos eleitores — ou pelo menos potenciais eleitores — estão utilizando os contribuintes como seu cofrinho pessoal?

Embora as controvérsias recentes em torno do vale-alimentação tenham colocado esse programa em destaque, o food stamp é apenas a ponta do iceberg. O número de americanos que recebem renda mensal financiada por impostos vai muito além dos 41 milhões que utilizam o vale-alimentação. Por exemplo, 72 milhões de americanos recebem Previdência Social, e 65 milhões desses também recebem serviços de saúde custeados por impostos por meio do Medicare.

Sim, beneficiários da Previdência Social gostam de afirmar que “pagaram para o sistema” e que agora recebem seus pagamentos a partir de algum tipo de fundo fiduciário imaginário. A realidade, porém, é que Social Security e Medicare são financiados 100% por trabalhadores atuais. Ou seja, os programas não passam de uma transferência de renda de trabalhadores para aposentados. Em todo sentido — exceto no discurso — Social Security e Medicare são apenas programas assistenciais, e todo político sabe que seus eleitores idosos esperam que ele continue explorando os contribuintes atuais para manter os aposentados satisfeitos.

Há ainda 70 milhões de americanos atendidos pelo Medicaid. Em muitos casos, os serviços do Medicaid equivalem a milhares de dólares por mês para seus beneficiários.

Não podemos simplesmente somar esses números, porém, porque há muita sobreposição entre os programas. Por exemplo, 78% dos beneficiários de vale-alimentação também são elegíveis para o Medicaid. Além disso, como estamos tratando tudo isso no contexto do voto, devemos remover as crianças — que não podem votar — das contagens[i].

Os beneficiários do Medicare estão quase todos inscritos no Social Security, portanto o grupo “Previdência Social e/ou Medicare” totaliza aproximadamente 72 milhões de adultos. A esse número podemos somar os beneficiários adultos do Medicaid, que correspondem a cerca de 60% do total de inscritos. Isso equivale a cerca de 42 milhões de adultos. Mas também precisamos remover os 12 milhões de beneficiários do Medicaid que também recebem Medicare, já incluídos na categoria anterior. Isso significa que podemos acrescentar 30 milhões de adultos no Medicaid aos 72 milhões no Social Security. Em seguida, podemos adicionar os beneficiários adultos do vale-alimentação que não estão incluídos no Medicaid, o que representa mais 5,4 milhões de adultos. Chegamos, assim, ao total aproximado de 107 milhões de residentes adultos nos EUA que recebem algum tipo de assistência social — e isso sem sequer considerar o TANF, auxílio-moradia (Seção 8) ou outros programas menores.

Número total de adultos nos EUA (em milhões) que receberam pagamentos do governo federal americano em bolsas e serviços, sendo eles (de cima pra baixo): Previdência Social e/ou Medicare; Adultos que recebem pagamentos do Medicaid mas que não estão no Medicare; Militares, prestadores de serviços para o governo federal americano e trabalhadores diretos do governo; adultos que recebem os chamados food stamps (sem receberem também fundos do Medicaid) | Imagem retirada do site do artigo original.

Não se esqueça dos funcionários públicos e contratados pagos com dinheiro de impostos

Naturalmente, as pessoas que recebem os chamados “benefícios sociais” não são as únicas que vivem da generosidade compulsória dos contribuintes. Há pelo menos 10 milhões de outras pessoas cujos salários vêm diretamente dos impostos. Por exemplo, existem 2,2 milhões de servidores civis federais, 1,3 milhão de militares, 400 mil funcionários dos correios, 1,8 milhão de trabalhadores pagos por bolsas federais, e mais de 5 milhões de prestadores de serviços contratados pelo governo federal. Essa última categoria inclui engenheiros e profissionais de alto nível que produzem armamentos para o Pentágono ou prestam “consultoria” para os departamentos de Agricultura, Estado e outras agências[ii].

Força de trabalho completa do governo federal americano, incluindo empregos “mistos” entre 1984 e 2020. As cores representam as seguintes modalidades: Azul = servidores federais; Laranja = militares; Cinza = serviço postal; Amarelo = prestadores de serviços por contrato; Preto = subsídios | Imagem retirada do Brookings Institution

Muitos contratados e funcionários diretos do governo federal dirão que não pertencem à mesma categoria que os beneficiários de assistência social, porque eles “trabalham”. Porém, do ponto de vista das transferências tributárias e da política fiscal, não há diferença alguma. A questão aqui não é moralidade, virtude ou merecimento de quem recebe um cheque pago com impostos. Estamos apenas destacando os milhões de americanos cuja renda se baseia em uma transferência forçada de riqueza dos contribuintes para o bolso dos destinatários.

Nesse sentido, contratados federais e outros trabalhadores públicos se assemelham a todos os que vivem de dinheiro proveniente de impostos: todos eles possuem justificativas próprias para reivindicar o direito ao dinheiro dos contribuintes. Tentar convencê-los do contrário costuma ser um esforço inútil, e por razões que Upton Sinclair apontou há muito tempo: “É difícil fazer um homem compreender algo quando seu salário depende de ele não compreender”.

Percentual total de adultos americanos recebendo pagamentos provenientes dos pagadores de impostos. De azul claro, é possível ver que apenas 54,1% dos adultos americanos não recebe alguma forma de subsídio governamental | Imagem retirada do artigo original

Mas, seja qual for a justificativa apresentada pelos aproximadamente 117 milhões de americanos que vivem da “generosidade” dos contribuintes, o fato permanece: pelo menos um terço da população dos Estados Unidos — quase 45% da população adulta — recebe muito dinheiro proveniente de impostos. E pior: ainda não estamos incluindo aqui todos os servidores de governos locais financiados por verbas federais, estudantes e professores de universidades sustentadas por subsídios federais, ou usuários de programas menores, como o LIHEAP (programa de assistencialismo para compra de energia para famílias de baixa renda). Ainda assim, encontramos quase metade da população americana recebendo salários ou “benefícios” financiados pelos contribuintes.

Quando burocratas, assistidos e contratados governamentais superam os contribuintes

Então, devemos realmente acreditar que essas pessoas votariam algum dia por cortes substanciais nos gastos do governo? Todo político conhece essa resposta. Ele sabe que milhões de contratados governamentais e militares jamais apoiarão um candidato que proponha reduzir significativamente o orçamento das Forças Armadas. Os políticos sabem que se opor à Previdência Social é suicídio político. Hoje em dia, até mesmo questionar o Medicaid tornou-se eleitoralmente perigoso, já que tantos milhões de eleitores dependem de seus serviços financiados por impostos.

Mesmo que apenas metade desses 116 milhões de adultos sustentados por verbas públicas vote, ainda assim representa uma parcela enorme dos 150 milhões de eleitores que participaram das eleições de 2024. Afinal, o total de adultos nos Estados Unidos é cerca de apenas 258 milhões de pessoas.

Isso tudo ilustra por que o governo dos Estados Unidos nunca irá conter os gastos ou lidar seriamente com o problema crescente da dívida e dos déficits — a menos que enfrente uma crise aguda de endividamento soberano ou algum evento quase golpista, provavelmente violento. Os cerca de cem milhões de americanos que dependem dos gastos federais para sua renda simplesmente não permitirão que qualquer reforma real aconteça. Dívida descontrolada e gasto público explosivo já estão incorporados ao sistema. Não há saída legal ou ordenada para isso.

A dinâmica política em ação aqui foi explicada por Ludwig von Mises há muito tempo. Em seu pequeno livro Burocracia, Mises examinou esse problema no contexto dos funcionários governamentais. Em uma seção intitulada “O burocrata como eleitor”, Mises afirma:

“O burocrata não é apenas um funcionário do governo. Ele é, sob uma constituição democrática, ao mesmo tempo eleitor e, como tal, parte da soberania política, sendo também seu empregador. Ele se encontra em uma posição peculiar: é simultaneamente patrão e empregado. E seu interesse pecuniário enquanto empregado supera enormemente seu interesse enquanto patrão, pois ele recebe muito mais dos cofres públicos do que contribui para eles.

Essa relação dupla torna-se ainda mais significativa à medida que aumentam as pessoas na folha de pagamento do governo. O burocrata-eleitor está muito mais interessado em aumentar seu próprio salário do que em manter o orçamento equilibrado. Sua principal preocupação passa a ser inchar a folha de pagamento”.

Mises prosseguiu analisando o surgimento de grupos de interesse poderosos na França e na Alemanha nos anos que antecederam “a queda de suas constituições democráticas.” Ele explicou:

“Não havia apenas a multidão de funcionários públicos e os empregados em setores nacionalizados da economia (como ferrovias, correios, telégrafos e telefonia). Havia também os beneficiários do seguro-desemprego e da previdência social, bem como os agricultores e outros grupos que o governo subsidiava direta ou indiretamente. A principal preocupação deles era obter mais recursos dos cofres públicos. Eles não se importavam com questões “ideais” como liberdade, justiça, império da lei ou bom governo. O que queriam era mais dinheiro — e nada além disso. Nenhum candidato ao parlamento, assembleias provinciais ou conselhos municipais podia correr o risco de se opor ao apetite dos funcionários públicos por aumentos salariais. Os diversos partidos políticos competiam entre si para ver quem seria mais generoso”.

Mises concluiu:

“A democracia representativa não pode subsistir se grande parte dos eleitores estiver na folha de pagamento do governo. Se os membros do parlamento deixarem de se considerar mandatários dos contribuintes e passarem a se ver como representantes daqueles que recebem salários, subsídios, auxílios e outros benefícios do Tesouro, a democracia está perdida”.

A lógica dessa posição é simples. Se os pagadores de impostos que realmente pagam a conta forem superados — em número ou em influência política — pelos que vivem de recursos tributários, o sistema econômico tenderá, inevitavelmente, ao gasto desordenado, levando, no fim das contas, à falência.

Os Estados Unidos já avançaram muito nesse caminho.



- Mises Brasil