No primeiro ano de comando de Hugo Motta e Davi Alcolumbre, o Congresso atuou como linha auxiliar do Planalto e blindou ministros do Supremo
O s Poderes da República foram concebidos para atuar de forma autônoma e independente, conforme a formulação clássica de Montesquieu sobre o equilíbrio institucional. Em 2025, porém, essa separação mostrou-se mais teórica do que prática no Congresso Nacional. Sob as presidências de Hugo Motta (Republicanos-PB), na Câmara, e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), no Senado, o Legislativo organizou uma agenda previsível e controlada, orientada a assegurar ao governo Lula vitórias sucessivas em matérias fiscais, orçamentárias e administrativas.
No primeiro ano da gestão de Hugo Motta e Davi Alcolumbre, Câmara e Senado assumiram papéis complementares em favor do Palácio do Planalto. Na Câmara, projetos de recomposição fiscal — medidas que aumentam a arrecadação por meio de novos impostos, cortes de benefícios ou elevação de tributos já existentes — foram votados com rapidez. No Senado, a atuação foi a de contenção: a Casa funcionou como anteparo para barrar ou segurar propostas que poderiam constranger o governo, além de manter engavetados pedidos de impeachment contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Quando o calendário apertou, na última semana de funcionamento do Legislativo, a dinâmica ficou ainda mais explícita. Bastaram 24 horas para que o discurso público contra o aumento de impostos fosse abandonado em favor de um acordão que elevou as emendas parlamentares ao patamar recorde de R$ 61 bilhões. O saldo político foi inequívoco: um Parlamento eficiente para garantir recursos ao governo e ampliar seu próprio poder orçamentário, mas lento — quando não omisso — diante de demandas populares como a anistia aos presos do 8 de janeiro, o homeschooling, o fim do foro privilegiado e a limitação das decisões monocráticas do STF
O acordão das emendas
Nada simboliza melhor esse alinhamento do que o desfecho orçamentário do próximo ano. Depois de meses de cabo de guerra com o Executivo, em que congressistas diziam resistir a novos aumentos de impostos sob o argumento de que “o brasileiro não aguenta mais pagar a conta do Estado”, o Congresso mudou de posição em tempo recorde. O gatilho foi o interesse corporativo: assegurar R$ 61 bilhões em emendas parlamentares no Orçamento de 2026.
A contrapartida veio com a aprovação, em sequência relâmpago na Câmara e no Senado, de um projeto que reduziu benefícios fiscais federais e elevou a tributação sobre casas de apostas online, fintechs e juros sobre capital próprio. O texto recompôs R$ 22,5 bilhões no Orçamento e permitiu ao governo fechar as contas do próximo ano, ao menos formalmente, dentro da meta fiscal.
A negociação teve participação direta do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o resultado foi um Orçamento de R$ 6,5 trilhões, com R$ 61 bilhões em emendas — sendo R$ 37,8 bilhões impositivas —, R$ 5 bilhões reservados ao Fundo Eleitoral e margem fiscal aberta com a retirada dos precatórios das contas. Enquanto isso, o salário mínimo de 2026 ficou abaixo da projeção inicial.
O que ficou pelo caminho
O mesmo Congresso que mostrou agilidade para fechar acordos fiscais e ampliar seu próprio poder orçamentário passou 2025 empurrando com a barriga pautas que mobilizam a sociedade civil. Enquanto projetos de interesse direto do Planalto avançavam em ritmo acelerado, demandas populares foram sendo esvaziadas, diluídas ou simplesmente engavetadas.
O caso mais emblemático foi o da anistia aos manifestantes presos pelo 8 de janeiro. Sob pressão de familiares, protestos de rua e intensa mobilização nas redes sociais, o Congresso chegou a sinalizar a disposição de votar um perdão amplo, geral e irrestrito. O recuo veio em seguida. Em vez de enfrentar o tema de forma direta, o Parlamento optou por um projeto de dosimetria das penas — uma solução intermediária que preservou as decisões já tomadas pelo STF e evitou o desgaste institucional de um confronto aberto com a Corte.
Na prática, a mudança de rota esvaziou a proposta de anistia. Ao substituir o perdão coletivo por ajustes pontuais nas penas, o Congresso transferiu ao próprio Judiciário a palavra final sobre cada caso, frustrou a expectativa criada junto às famílias dos presos e manteve intacta a arquitetura punitiva construída após o 8 de janeiro.
Outro tema deixado em segundo plano foi o homeschooling. Defendido por milhares de famílias e por movimentos organizados que pressionam o Congresso há anos, o ensino domiciliar voltou a ser debatido em audiências e comissões, mas não avançou. Apesar de constar em promessas eleitorais e mobilizar uma base social engajada, o projeto não entrou na lista de prioridades do Legislativo.
Situação semelhante viveu a proposta de fim do foro privilegiado. Bandeira recorrente em campanhas eleitorais e associada ao discurso de combate a privilégios, o projeto sequer entrou na pauta de votações em 2025. A promessa foi, mais uma vez, adiada indefinidamente.
A Casa Alta operou como escudo institucional do governo, barrando projetos incômodos e mantendo engavetados pedidos de impeachment de ministros do STF.
Outro tema deliberadamente deixado de lado foi o fim das decisões monocráticas no STF. Apesar de reiteradas declarações públicas sobre a necessidade de reequilibrar a relação entre os Poderes e conter a concentração excessiva de autoridade em ministros da Corte, o Congresso não avançou na regulamentação do tema.
Propostas que limitam decisões individuais com impacto nacional — frequentemente usadas para suspender leis, barrar atos do Executivo ou interferir diretamente em prerrogativas do Legislativo — permaneceram paralisadas.
A estagnação da pauta reforçou a percepção de um Parlamento que evita enfrentar o Judiciário, optando pela acomodação institucional em vez de exercer seu papel constitucional de freio e contrapeso.
Câmara sob controle
Na Câmara, a condução de Motta foi decisiva para esse resultado. Com habilidade de articulação e apoio do Planalto, o presidente da Casa evitou confrontos diretos e manteve a agenda sob controle de blocos governistas. A previsibilidade das votações tornou-se regra. Projetos do Executivo tramitaram com rapidez, enquanto iniciativas que poderiam gerar um possível mal-estar com o Planalto ou o Supremo foram adiadas ou diluídas. Ao anunciar a votação da então anistia, Motta passou a ser bombardeado pelo Planalto.
Chegou a dar uma declaração direcionada ao Executivo, em que destacou: “Esse Congresso aprovou quase tudo que o governo enviou para apreciação dos congressistas”. E, embora tenha contrariado o governo petista com a votação da pauta, garantiu que o perdão amplo fosse transformado na dosimetria das penas.
Esse papel de operador confiável do governo ganhou contornos ainda mais nítidos no fim do ano, com a indicação do novo ministro do Turismo. Após a demissão de Celso Sabino, Hugo Motta articulou diretamente com o presidente Lula a nomeação de Gustavo Feliciano, em um movimento interpretado nos bastidores como parte de uma estratégia calculada de aproximação com o Palácio do Planalto.
Nos bastidores, a percepção é de que essa articulação do presidente da Câmara está inserida desde já no tabuleiro eleitoral de 2026. Ao oferecer governabilidade no presente, Motta acumula capital político para o futuro, fortalece alianças regionais e constrói as condições para viabilizar a candidatura do pai, Nabor Wanderley, ao Senado. Senado como escudo No Senado,
Davi Alcolumbre exerceu função complementar. Ao longo do ano, a Casa Alta operou como escudo institucional do governo, barrando projetos incômodos e mantendo engavetados pedidos de impeachment de ministros do STF, como Alexandre de Moraes.
A justificativa foi a preservação da harmonia entre os Poderes. Ao encerrar os trabalhos legislativos, Alcolumbre fez questão de reforçar o discurso da convergência: “Mais do que nunca, o Parlamento brasileiro precisa caminhar unido”. A declaração ocorreu em uma celebração da aprovação do Orçamento e da cooperação entre Câmara e Senado.
O alinhamento de Alcolumbre com o Planalto foi quase total até os últimos meses do ano, quando surgiu um ruído relevante: a indicação de Jorge Messias ao Supremo. A ausência de envio formal do nome ao Senado inviabilizou a sabatina e empurrou a decisão para 2026.
Alcolumbre, que desde o início demonstrava preferência por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), viu frustrada a chance de derrotar Messias ainda em 2025. O episódio não representou ruptura com o governo, mas deixou explícita a lógica que regeu a relação ao longo do ano. Ao travar a indicação, Alcolumbre sinalizou que o alinhamento não é automático nem incondicional. Em política, tudo tem um preço — e Lula está sempre disposto a pagar.
Sarah Peres - Rrvista Oeste