Na propaganda do chinelo, é evidente, por si próprio, sem necessidade de adjetivos, o significado gigantesco do contrato de Vorcaro com a família Moraes
N a semana do fiasco científico que foi o segundo fracasso consecutivo de lançamento em Alcântara, caminhamos também no nível do chinelo no debate político. Explodiu como o foguete espacial a fala publicitária de Fernanda Torres, de que não devemos entrar em 2026 com o pé direito. “O que eu desejo é que você comece o ano novo com os dois pés.” Antes de ser uma proclamação ideológica, a frase é de uma tremenda burrice. Ora, quem entra com os dois pés ou está numa maca, ou numa cadeira de rodas ou num caixão. As pessoas que não estão nesses casos avançam, alternando as pernas, para caminhar ou usar escadas. Ninguém consegue fazer isso com os dois pés à frente a menos que esteja sobre patins. E chinelos não têm rodas.
O texto dado a Fernanda ressalva: “Não é nada contra a sorte”. Pois tampouco é uma questão de superstição. É cultural. Na nossa língua de origem, esquerda é sinistra. No Credo, Cristo está à direita de DeusPai. Está em Eclesiastes, 10:2: “O coração do sábio se inclina para a direita, mas o coração do tolo, para a esquerda”. “Senta-te à minha direita” está na literatura. Usa-se a mão direita para cumprimentar. E o pé direito para entrar. Ou, no ano eleitoral, estando em campanha, aconselha-se evitar o uso da direita. Como reação, o boicote contra as Havaianas não deu certo, pelo menos no shopping que eu frequentei: a loja estava lotada.
Não deu certo? Deu sim. As notícias sobre o caso Moraes-Master ficaram em segundo plano, enquanto corre solto com os dois pés o debate altamente grego no nível chinelar. Assim como é evidente a burrice dos que fizeram o texto da propaganda do chinelo, é evidente, por si próprio, sem necessidade de adjetivos, o significado gigantesco do contrato de Vorcaro com a família Moraes. Mas poucos vão além do chinelo. Quanto mais Moraes emite notas para explicar o que já se explicou sozinho, mais Moraes mete os dois pés na jaca, como aconselha Fernanda Torres.
O senador Alessandro Vieira (MDB Sergipe), delegado de polícia, quer comissão parlamentar para investigar. Mas já começaram as férias legislativas, e só 2026 pode descobrir, por exemplo, quem Toffoli acha que deve ser protegido pelo sigilo no caso Master — e por quê. Não sei com que pé devemos entrar no ano novo para ter garantia de transparência no que parece ser advocacia administrativa pressionando o Banco Central ou o Governador de Brasília, que defendeu a compra do falido Master pelo banco estatal do Distrito Federal. O governador Ibaneis, destituído provisoriamente por Moraes, retornou ao posto e depois defendeu o negócio com o Master, conseguindo aprovação da operação no legislativo local. E ninguém mais incomodou o governador pelo 8 de janeiro.
A civilização brasileira voltará à selvageria se a ética entrar em 2026 com os dois pés — pés juntos, como num caixão.
Uma CPI esclarece essas coisas, assim como a atuação de ministros do Supremo através de suas esposas, advogadas de sucesso. Advocacias anexas podem ser soluções, mas logo serão sérios problemas, se o país for além dos chinelos. É a sina das mulheres dos césares; se advogassem na comarca de Boa Vista ou Rio Branco, estariam acima de suspeitas.
Mas em Brasília, e tendo clientes como J&F e Master, as tentações são grandes e as suspeitas do mesmo tamanho — a menos que houvesse uma decisão ética dos parentes e afins de, por razões éticas, manterem distância sanitária entre as bancas de advocacia e o tribunal. Evitaria contaminação e seria moralmente saudável. Com os dois pés na jaca, o Ministro Moraes emitiu uma segunda nota no mesmo dia, o que, por si, é revelador. O meio é a mensagem — descobriu McLuhan. A segunda explicação veio depois que o distinto público entendeu a resposta do Banco Central apenas confirmando que em reuniões com Moraes tratou-se, sim, de efeitos da Magnitsky — sem negar que tivessem tratado do Master.
O Ministro, então, fez uma nova nota, afirmando que o escritório de Viviane e filhos jamais tratou de interesses do Master no Banco Central. Daí se deduz que ele já fala pelo escritório, e que lhe é literalmente familiar e, não menos revelador, que Vorcaro pagou R$ 3,6 milhões por mês, mas o escritório não o defendeu da liquidação pelo Banco Central. Pagou por que serviço?
Parafraseando o Barão de Itararé: Ou restaure-se a moralidade, ou nos afundamos como civilização. Fachin quer código de conduta porque os supremos, que estão acima do Conselho Nacional de Justiça e da Lei Orgânica da Magistratura. Gilmar tem boas razões para alegar que não precisa. Também acho, mas tenho razões diferentes: código de conduta é forjado na medula desde criança, em casa. Tem que ser da natureza das pessoas. A civilização brasileira voltará à selvageria se a ética entrar em 2026 com os dois pés — pés juntos, como num caixão.
Alexandre Garcia - Revista Oeste