A toga virou escudo — contra críticas, contra investigações, contra o escrutínio público e, em última instância, contra a própria Constituição
H á escândalos de corrupção que se esgotam no fato. O Fiat Elba de Fernando Collor é talvez o exemplo mais didático da história republicana recente: um carro popular, adquirido com dinheiro de origem ilícita, usado para benefício pessoal do então presidente da República. O fato era tosco, comparativamente singelo, e nada obscuro. Descoberto o automóvel, revelou-se o esquema; revelado o esquema, identificaram-se os intermediários; identificados os intermediários, o sistema político reagiu. O escândalo cumpriu seu ciclo natural: nasceu, foi compreendido e se encerrou como símbolo de corrupção pessoal e abuso individual de poder. Chega a ser quase nostálgico.
Com o caso envolvendo o pretenso juiz Alexandre de Moraes e o Banco Master, porém, a lógica se inverte. Aqui, o fato não encerra nada: ele apenas abre o abismo — porque não estamos diante de um desvio pessoal, mas da face visível de uma deformação institucional muito mais profunda, a qual, aplaudida nos últimos anos quando conveniente, começa agora a se tornar incômoda até mesmo aos seus antigos entusiastas.
De acordo com a imprensa, Alexandre de Moraes teria mantido contatos reiterados com o presidente do Banco Central para tratar da situação do Banco Master, instituição privada envolta em graves problemas financeiros e sob escrutínio técnico da autoridade monetária. As conversas teriam ocorrido durante a análise da tentativa de venda do banco ao BRB, operação sensível, que exigia independência regulatória absoluta e distância total de qualquer pressão externa. Em qualquer democracia minimamente funcional, esse dado isolado já seria suficiente para acionar alarmes institucionais.
O quadro se torna ainda mais grave quando se considera o contexto em que essas tratativas ocorreram. O Banco Master mantinha contrato milionário com o escritório de advocacia de Viviane Barci, esposa de Moraes. Não há aqui zona cinzenta ou controvérsia interpretativa. Estamos diante de um conflito de interesses elementar, daqueles que qualquer manual básico de ética pública ensina a evitar não apenas na substância, mas também na aparência. Tudo indica que o contratado de fato pelo Master foi o marido, não a esposa.
E, se os fatos se confirmarem, Alexandre de Moraes terá incorrido em advocacia administrativa, crime previsto no Art. 321 do Código Penal Brasileiro, e definido como a conduta de “patrocinar (defender, facilitar) interesse privado (de terceiros ou próprio) perante a Administração Pública, valendo-se da qualidade de funcionário público”.
Mas, como dissemos, o fato potencialmente criminoso não pode ser lido como um ponto fora da curva. Ele se insere numa longa trajetória de autoproteção corporativa do Supremo Tribunal Federal, cuja história recente revela um padrão inquietantemente consistente: sempre que investigações tangenciam ministros ou seus familiares, o sistema reage não para esclarecer os fatos, mas para neutralizá-los. Foi essa, inclusive, a origem do famigerado “Inquérito das Fake News”, o ato institucional que formaliza a juristocracia no Brasil no ano de 2019.
Um fio histórico publicado nas redes sociais pelo jornalista Ivanildo Terceiro ajuda a iluminar esse padrão com precisão desconfortável. Ivanildo lembra que, em 2018, a Receita Federal identificou 133 agentes públicos com indícios de movimentações patrimoniais suspeitas. Entre eles, figuravam familiares diretos de ministros do STF, mais especificamente, as esposas de Gilmar Mendes e Dias Toffoli. O que se seguiu não foi o aprofundamento técnico das apurações, mas sua interrupção sistemática. Auditores fiscais passaram a sofrer pressões administrativas; procedimentos foram esvaziados; investigações foram travadas.
Em pouco tempo, a engrenagem institucional operou sua inversão típica (recentemente ilustrada pelo caso de Eduardo Tagliaferro, ex-integrante do gabinete clandestino de censura de Alexandre de Moraes): investigadores tornaram-se investigados, enquanto os investigados foram blindados.
Porque o fato, aqui, é apenas o sintoma visível de uma República em que a toga passou a valer mais do que a lei.
Alexandre de Moraes ocupa posição central nesse processo de consolidação de um Judiciário autorreferente. À frente do Inquérito das Fake News — um artefato jurídico que concentrou em suas mãos funções de polícia, acusação e julgamento —, o sujeito ajudou a institucionalizar um modelo de poder incompatível com qualquer tradição liberal do Estado de Direito.
Um modelo em que o juiz não se limita a julgar fatos passados conforme a lei, mas passa a administrar riscos futuros conforme suas conveniências políticas e/ou pecuniárias, alheio a qualquer freio institucional e limite legal. É nesse ambiente que o caso Banco Master se torna inteligível.
Um ministro que já atua como instância suprema da República — acima do Executivo, acima do Legislativo, acima da imprensa e imune à crítica pública — naturalmente se sente autorizado a interceder junto ao Banco Central, a circular entre interesses privados e a tratar conflitos de interesse como detalhes menores.
O problema, portanto, não é apenas de moral individual (obviamente pervertida no caso em tela). Ele é estrutural.
O Judiciário brasileiro, sobretudo sua cúpula, deixou de exercer um papel contramajoritário no sentido clássico e passou a funcionar como um poder soberano informal, sem freios, sem contrapesos e sem mecanismos reais de responsabilização. A Constituição de 1988, pródiga em garantias, foi avara em limites. Criou-se um Supremo sem mandato, sem controle externo efetivo, sem risco político concreto e sem uma cultura institucional de autocontenção. Some-se a isso a presença, na presidência de ambas as casas legislativas, de indivíduos moralmente fracos e de rabo-preso, e o resultado é essa juristocracia incontrolável com a qual o país agora não sabe lidar.
Nesse contexto, a toga já não simboliza imparcialidade e equilíbrio, mas corporativismo e húbris. A toga virou escudo — contra críticas, contra investigações, contra o escrutínio público e, em última instância, contra a própria Constituição. Tudo se justifica em nome de abstrações grandiloquentes — “democracia”, “Estado de Direito”, “defesa das instituições”. Quando um ministro do STF se envolve, direta ou indiretamente, em tratativas que beneficiam uma instituição privada ligada a interesses familiares, e nada acontece, a mensagem transmitida à sociedade é devastadora: há uma elite institucional acima da lei. Não por acaso, a confiança pública no Judiciário se deteriora a cada dia. Um comentarista do UOL — quem diria! — chegou a equiparar a corte a um lupanário… ou, em bom português, a um puteiro.
O escândalo do Banco Master não é apenas sobre um banco, nem apenas sobre Alexandre de Moraes. Ele é sobre a transformação do Supremo em um poder que já não se reconhece como limitado. Um poder que julga, investiga, acusa, censura, regula e intermedeia — tudo ao mesmo tempo. Um poder que exige obediência irrestrita, mas rejeita qualquer forma de fiscalização. É óbvio que um tal poder, que não se vexa em jogar pais e avós de família inocentes na cadeia (chegando a matar um deles por inércia), não hesitará em se locupletar em corrupção e enriquecimento ilícito.
Enquanto esse modelo não for enfrentado de maneira clara — no debate público, no Congresso e na consciência nacional — novos escândalos continuarão a surgir. E, como este, não se esgotarão no fato. Porque o fato, aqui, é apenas o sintoma visível de uma República em que a toga passou a valer mais do que a lei. E muitos dos que agora choram diante disso foram responsáveis por imantar de inimputabilidade sacrossanta os nossos magistrados supremos.
Agora se espantam que aquele a quem chamaram de “a muralha” (da democracia, do Estado de Direito, da própria República) não passava de um sepulcro caiado. Adoraram um bezerro de ouro e agora não sabem o que fazer para desadorá-lo. Fizeram um pacto faustiano com a tirania “do bem” e agora gemem porque o tirano vem cobrar sua dívida em almas…
Flávio Gordon - Revista Oeste