sexta-feira, 24 de outubro de 2025

'Por que o silêncio?', por Adalberto Piotto

Diante do estado de exceção que hoje assola o Brasil, os brasileiros e brasileiras que fingem não ver a realidade têm vergonha de serem honestos, medo de serem honestos ou têm sido bem pagos para não serem honestos?


Ilustração: Montagem Revista Oeste/Agência Brasil/Shutterstock

S ob uma tensa e pretensa normalidade, o Brasil está sob ataque no que tem de mais sagrado: a vida brasileira como ela é, mais precisamente como costumava ser até 2019, ano do famigerado Inquérito 4.781. Por que tanta gente repentinamente abriu mão de defender nossa democracia, a real, a verdadeira, a construída desde os anos 1980? As nossas liberdades estão em risco, assim como nosso outro grande valor coletivo, a estabilidade da moeda, que requer responsabilidade fiscal para garantir o País que não aceita mais retroceder. Por que essa mesma gente ignora a atual decadência institucional sem paralelo em que estamos imersos, que faz da Constituição letra morta justamente por quem jurou guardá-la — e me refiro aqui ao Supremo Tribunal Federal —, é algo que requer respostas. Talvez receio de enfrentar o arbítrio e um STF desmesurado em seu poder que assombra quem trabalha e produz desde sua guinada de ativismo judicial? 

Não há dúvida de que empresários, por exemplo, ou mesmo cidadãos comuns tentando sobreviver aos desmandos do consórcio que governa o País com mão de ferro, se sintam acuados e temam a perseguição da mão pesada de um Estado opressor. Faz seis anos que a lei, os direitos e as garantias individuais foram relativizados em nome da mais escandalosa narrativa de “salvar a democracia”, uma espécie de Santa Inquisição da hipocrisia. Enfim, é medo? Cansaço? Seriam sentimentos compreensíveis se não estivéssemos à beira de perder o País para uma esquerda política do pior tipo que a América Latina já produziu no continente. Apesar do verniz brilhante com pretensão democrata, não engana mais ninguém. O Brasil, antes farol da região, foi reduzido por Lula a persona non grata no ocidente democrático. 


A narrativa de “salvar a democracia” esconde a hipocrisia da esquerda, que está levando o Brasil para uma perda irreparável de sua posição no ocidente democrático | Foto: REUTERS/Adriano Machado 


Mas o questionamento permanece: Por que tanta gente influente olha para a realidade do País e vira a cara, tentando fazer que não viu o que continua a olhos vistos? 

Em 1920, impossibilitado por motivos de saúde de comparecer à Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, como paraninfo da turma de Direito daquele ano, Ruy Barbosa enviou uma carta aos jovens formandos que seria lida em forma de discurso pelo professor Reynaldo Porchat. Na carta, Ruy denuncia os desvios morais da época e conclama os jovens advogados a jamais se permitirem a desilusão com a política ou os defeitos da sociedade. Perante as dificuldades e desencantos, perseverança. Era um chamamento a não desistirem do Brasil e usarem seu nobre conhecimento de operadores do Direito em nome das pessoas. O trecho mais famoso da carta é tão duro quanto sublime, realista e provocador, brasileiro no que de pior fazemos e brasileiro no que de melhor podemos nos tornar como nação. Reproduzo aqui: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.” Algum tempo depois, Ruy Barbosa entraria para a imortalidade, não apenas como membro fundador da Academia Brasileira de Letras, mas da alma nacional.

Ver futuros advogados das atuais escolas de Direito, mambembes ou sofisticadas, proibindo violentamente o contraditório em sala de aula de professores que pensam diferentemente do movimento estudantil acéfalo e ideologicamente estúpido que infesta nossas universidades, é algo muito além de preocupante. Ou o silêncio de juristas signatários da Carta em Defesa da Democracia de 2022, quando não havia ameaça alguma à vida brasileira, silenciarem diante dos descalabros de hoje, da afronta aos mais elementares direitos fundamentais — ouso aqui parafrasear a genialidade de Ruy: esses homens e mulheres de hoje, que evitam enfrentar a realidade e os ceifadores das liberdades e garantias individuais, têm vergonha de serem honestos, medo de serem honestos ou têm sido bem pagos para não serem honestos? 

A patota ideológica de artistas, jornalistas, acadêmicos e incautos cabe na vergonhosa terceira alternativa. Mas e os outros? Ter uma causa no STF é limitante para a dignidade do advogado de dizer o que pensa na vida pública? Seria punido no julgamento? Se Sobral Pinto, célebre jurista deste País, costumava dizer que “a advocacia não é profissão para covardes”, ele se junta a Ruy Barbosa em mostrar que o desafio de manter a dignidade vem de longe. Porque é fato que já não vivemos mais sob o Estado Democrático de Direito, a legalidade, o devido processo legal — que garante o inalienável direito à ampla defesa — ou sob um mínimo de normalidade institucional, o que aumenta o desafio público. O regime brasileiro hoje é de exceção. E exceção aos direitos estabelecidos de forma cristalina na Constituição de 1988. Dito isso, mensurado o desmantelo institucional, o que mais falta para vencer o imobilismo dessa gente? 


O regime atual no Brasil é de exceção, desrespeitando direitos fundamentais da Constituição de 1988 — resta agora romper o imobilismo para reverter a situação | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil 

Diga-me, você, leitor, em que lugar, em qual democracia, em que fim de mundo com um mínimo de pudor — legal ou social — ministros de cortes superiores julgam casos em que seus cônjuges ou parentes próximos fazem parte da banca de advogados com óbvio interesse no processo? Em que país sério se permitiria que o presidente indicasse seu advogado particular como ministro da corte que pode julgá-lo ou que vai invariavelmente se manifestar sobre demandas de seu governo, tal como fez Lula? 

Cristiano Zanin é ministro do STF, com anuência do Senado, e já decidiu em casos que favoreceram o governo. No julgamento da alegada trama golpista, um processo eivado de erros de toda ordem, votou por condenar Jair Bolsonaro. Em nenhum momento alegou impedimento por questões morais ou processuais. 

No rito de convenientes indicações ao Supremo, que promete não parar tão cedo, Flávio Dino foi comemorado por Lula como o primeiro ministro comunista da Corte. Em que lugar o comunismo abraça a democracia? Em nenhum. Dino, como parte de um STF tomado ideologicamente pela esquerda, também tem invariavelmente votado a favor do governo e contra adversários políticos de Lula. A deusa da Justiça no Supremo parece já não ter mais uma venda a lhe cobrir os olhos. Talvez, um adereço que não lhe impede de enxergar com precisão a capa do processo.

Tudo isso é a realidade brasileira, mas que parece não comover essa gente diagnosticada por Ruy Barbosa. Mesmo assim, é preciso salvar o STF. Em uma democracia, a mais alta corte de justiça, quando não está sob a triste pecha de ser previsivelmente tendenciosa, é fonte primária de insegurança jurídica. De garantista, logo depois da Lava Jato, apesar do movimento estranho de anular o maior movimento de combate à corrupção, hoje parece se resumir ao anabolizado poder de um só ministro. 

O Inquérito do Fim do Mundo, aberto em 2019, ainda está em vigor. Outros foram abertos às dezenas na sequência, sempre no formato sigiloso e dentro do gabinete do ministro Alexandre de Moraes, que a tudo comanda sem se importar com a lei e as regras. Advogados de réus perseguidos gritam irregularidades processuais, ilegalidades e inconstitucionalidades, mas não são ouvidos, tampouco recebem a devida assistência da Ordem dos Advogados do Brasil. 

Recentemente, até a Defensoria Pública se negou a assumir a defesa do deputado Eduardo Bolsonaro, exilado nos EUA, porque, pela lei, ele deveria ter o direito de constituir advogado. E de ser notificado por carta rogatória. A DPU aplicou a lei, defendeu o Direito tal como ele é. O ministro, que havia dado a ordem, discordou e o caso promete se configurar em outro abuso contra os direitos do acusado. Não será o primeiro. Há anos, tantos outros advogados reclamam de pleno acesso aos autos enquanto não podem defender seus clientes de medidas punitivas, sem direito ao contraditório, que bloqueiam contas financeiras e de rede social, apreendem passaportes e decretam prisões. 

Prisões que, à luz da lei, são ilegais. A OAB, de longa história na defesa dos direitos dos advogados e dos direitos humanos, reagiu? Nada que tenha tido a contundência necessária. Sobral Pinto já nos advertira sobre a advocacia.


O STF, sob o comando de Alexandre de Moraes, tem se distanciado dos princípios democráticos e garantistas, gerando um ambiente de insegurança jurídica e ilegalidades processuais | Foto: Reprodução

A Vaza Toga, divulgada inicialmente pela Folha de S. Paulo e, posteriormente, assumida por Oeste com a inexplicável desistência de outros veículos, expôs um conluio entre juízes de Cortes superiores, assessores, jornalistas, policiais e peritos com um único objetivo: asfixiar a oposição de direita prendendo, prendendo mais e prendendo por mais tempo todos que não se alinhassem bovinamente ao atual governo ou à narrativa da tal “defesa da democracia”. 

As conversas entre o juiz auxiliar de Moraes no STF, Airton Vieira, e o perito do TSE, Eduardo Tagliaferro, em que combinavam como produzir as provas que seriam usadas posteriormente no julgamento, revelam a forma grotesca da perseguição estatal que se instalou na corte. A recomendação do “seja criativo” para punir “essas revistas golpistas”, ao se referir à Revista Oeste, não fechou a publicação, mas desmonetizou a empresa por quase um ano. 

O nome disso é asfixia financeira. Resistimos. O caso de Filipe Martins, ex-assessor internacional da gestão de Jair Bolsonaro, ainda preso por uma denúncia desmentida por várias provas e órgãos, é um tormento que deveria provocar insônia em qualquer aluno de direito ou cidadão com um mínimo de pudor democrático. Mas para os juristas da Carta pela Democracia da USP, tão temerosos com as agruras de uma ditadura que jamais seria instalada naquele momento, o caso, com formas de perseguição estatal evidentes, parece não existir. 

Depois de sofrer com a inacreditável inversão do ônus da prova, as agruras da própria prisão e das medidas cautelares que o transformaram em cidadão de segunda classe, Filipe Martins viu uma declaração das autoridades alfandegárias dos EUA afirmar, com toda a fé pública possível, que ele nunca entrara no país. A viagem nunca aconteceu. 

Era para ser a prova definitiva em seu favor. Em democracias normais, o juiz do caso determinaria a soltura imediata do réu e abriria uma investigação para apurar como uma informação falsa levou um cidadão inocente a ser preso injustamente. Mas Alexandre de Moraes ignorou tudo isso e pediu à Polícia Federal que se manifestasse novamente sobre o documento da Alfândega americana. A resposta da PF não foi um mea culpa. 

Ao contrário, culpou ainda mais o próprio Filipe e saiu dizendo que milícias digitais tentam descredibilizar o trabalho das instituições brasileiras, com novas ameaças de mais um inquérito a punir quem critica. Poderia ser classificado como sandice ou absurdo. Mas não. Só dobrou a aposta no que sempre foi: perseguição política sem fim. E mais uma vez, não se ouviu a voz da OAB, de juristas com casos no STF ou dos signatários da tal Carta do Largo de São Francisco. E hoje tudo isso já não é mais sobre Direito. É sobre decência e esse silêncio perturbador.


O mesmo silêncio que esbofeteia a alma da democracia brasileira e a dignidade da Débora dos Santos, a “Débora do batom”, símbolo do abuso judicial que acomete centenas de outros presos e perseguidos políticos do dia 8 de janeiro, numa lista que inclui deficientes mentais, andarilhos, moradores de rua, catadores de papel, professoras com uma vida dedicada à educação, vendedores ambulantes e pessoas que, como disse o ministro Luiz Fux, não tinham a menor condição de planejar, organizar ou dar andamento a um golpe de Estado. Em Direito Penal, o que vale é prova provada. Não houve. Mesmo assim, penas de 14, 15 anos ou mais foram decretadas de baciada, sem individualização de conduta e dentro do STF, sem direito a apelação.


Como tanta gente faz de conta que nada disso está acontecendo? O expresidente Jair Bolsonaro, o maior líder da direita no País, foi condenado por apenas uma turma do STF, onde jamais deveria ter sido julgado, cidadão comum que voltou a ser. Os advogados demonstraram a fragilidade da acusação. De nada adiantou. A sessão terminou em risos e afagos entre os ministros que atropelaram a lei num julgamento político que deveria ter sido técnico. Mas todos terão de conviver com o voto dissidente do ministro Fux que desmontou a trama persecutória do relator Alexandre de Moraes em todas as suas alegações, a começar pelo foro inadequado e as manobras para levar o caso à Primeira Turma. Foi voto vencido, mas uma aula de Direito Penal e de comportamento de um ministro da Suprema Corte. 

Por excesso de notório saber jurídico, seu voto deveria provocar um debate nacional sobre o Supremo e os rumos da Justiça no País. Mas não. Parte imensa do mundo jurídico, da imprensa e da academia preferiu enfiar a cabeça no buraco ou rir com o rapapé de piadinhas e gracejos do fim da sessão que resultou na condenação do expresidente e de outros réus. 

O último movimento de Luiz Fux foi, com votos e opiniões, demonstrar que a Primeira Turma do STF já não é mais um grupo de cinco ministros, um colegiado a debater teses e criar jurisprudências sérias com sólido embasamento legal e maturidade conceitual. É a corte do previsível e garantido 4 a 1, liderada por Moraes, que vê a maioria em torno de seu voto ser formada de véspera. Não por acaso, Fux se mudou para a Segunda Turma, não sem antes lembrar os demais ministros, no julgamento de “ataques ao sistema das urnas eletrônicas”, que críticas ao TSE e ao sistema eleitoral já foram feitas e nunca foram criminalizadas. Não se aplicava multa de R$ 22 milhões, como foi feito com o PL. Foi um último recado direto e em plenário a Alexandre de Moraes.


Fux denuncia a previsibilidade do STF sob Moraes e critica a criminalização de críticas ao sistema eleitoral - Foto: Fellipe Sampaio/ST


Dada toda essa realidade, em que momento da nossa história recente tantos brasileiros e entidades com conhecimento e história na defesa da democracia abriram mão de fazer o certo? E por que permitiram o abuso da lei e ilegalidades contra um lado do pensamento político da sociedade brasileira? Por que o vale-tudo contra Bolsonaro, bolsonaristas, a direita, os conservadores, os jornalistas ou todos os outros brasileiros que só pensam de forma diferente? Não existe valetudo em democracias. 

E a cegueira seletiva não se restringe ao STF. Os caros deslumbres da atual primeira-dama, os abusos institucionais e o populismo atroz de Lula seguem sem provocar nessa gente reações da proporção do estrago feito ou que será sentido em breve. A gestão petista do “faz o L” está levando o País a um caos fiscal, ao isolamento do mundo ocidental democrático e a uma bancarrota moral e econômica que já havíamos superado, mas o silêncio omisso e conivente impera. 

Até quando e por quê? 

Adalberto Pioto - Revista Oeste