Francis encerrou a conversa que não tive com Vargas Llosa
Mario Vargas Llosa também não escapou do enterro de segunda — em cova rasa e na ala dos indigentes — com o qual órfãos do Muro de Berlim infiltrados no jornalismo estatizado tentam vingar-se do sumiço do mastodonte soviético.
Espremidas em espaços raquíticos, informações paupérrimas só serviram para confirmar que os autores dos textos não sabiam direito quem estavam sepultando: todos se afogariam na própria estupidez caso tentassem cruzar dois parágrafos de Vargas Llosa.
No dia seguinte, “críticos literários” incapazes de lidar com álbuns de figurinhas resolveram fuzilar o cadáver.
“O ficcionista peruano escreveu alguns livros de boa qualidade, mas se perdeu em análises políticas que continham pouquíssimos acertos e uma infinidade de bobagens”, decidiu um VAR de consoantes e vogais produzido pela USP.
A “boa qualidade” lhe valeu o Nobel de Literatura e o tornou um dos mais premiados escritores da história. Tudo isso vale menos que zero desde o pecado irremissível cometido em 1971. Ao constatar que Cuba se transformara numa ditadura detestável como todas, e que o Fidel Castro que apoiara com entusiasmo não existia no mundo real, o democrata radical rompeu publicamente com a ditadura caribenha – e até o fim da vida combateu ditaduras à esquerda e à direita. \
O ficcionista virou apenas mais um nome na prateleira. Restou o reacionário extremista a neutralizar.
“Sou contrário a que divergências políticas se convertam em inimizades pessoais”, disse numa entrevista ao jornalista Ricardo Setti. “Isso me parece uma manifestação de barbárie.” Mas o Vargas Llosa elegante, gentil, cosmopolita e risonho convivia harmoniosamente com o peruano persistente, determinado, sem medo e bom de briga. Em vão, o pai autoritário fez o diabo para que o filho esquecesse a ideia de ser escritor. Achava aquilo “coisa de maricas e boêmios”. Era pouco mais que um adolescente quando escreveu a obra de estreia — a mão, usando uma caneta, como escreveria todas as outras. Nada a ver com apego a tradições e objetos antigos. Ele apenas gostava de escrever assim. Um conservador, aliás, não faria o que fez no parcialmente autobiográfico Tia Júlia e o Escrevinhador.
Parece mentira, mas ele tinha 19 anos quando se casou com Julia Urquidi, algumas primaveras a mais. Ela era irmã de uma mulher casada com um tio do escrevinhador Varguitas, algunha facilmente decifrável de Vargas Llosa. Ousadia nunca lhe faltou. Ele enfrentou a parentela enfurecida com a mesma bravura que esbanjaria depois de dizer a verdade sobre Cuba. Nenhuma surpresa, portanto. O que eu não poderia imaginar é que o mesmo livro contribuiria para impedir a concretização, em abril de 1995, do sonho perseguido anos a fio: conversar com Vargas Llosa ao menos por meia hora. Faltou pouco. Para ser preciso: faltou controlar o indomável Paulo Francis.
Eu estava em Porto Alegre porque dirigia a redação da Zero Hora, que publicava as colunas de Francis. Meu querido amigo estava lá a convite do Instituto de Estudos Empresariais, que desde 1988 organiza o Fórum da Liberdade, uma movimentadíssima sequência de palestras e debates. Francis figurava no elenco de palestrantes. Vargas Llosa também, informava a lista.
“É hoje!”, exclamei ao ver o nome.
Francis e eu nos juntamos à multidão que buscava acomodar-se no salão de jantar. Avistei duas cadeiras vazias numa das mesas quadradas para quatro, sem lugar marcado. Ao sentar-me, ficou-me claro que chegara a minha vez. Francis estava à minha esquerda. Vargas Llosa, à direita. À minha frente, o economista Roberto Campos contemplava o infinito.
Durante a tarde, Francis e eu tínhamos consumido várias doses de uísque. Antes mesmo de cumprimentarmos os dois companheiros de jantar laçamos o primeiro garçom que passava e pedimos mais duas doses.
Campos, com expressão de cansaço, quis vinho. Vargas Llosa reivindicou um copo de água mineral.
— Para começar… — informou.
Não haveria continuação. Às voltas com um surto de surdez, Francis andava falando alguns decibéis acima da linha do grito. Empunhando o copo, ele contemplou Roberto Campos por meio minuto e, subitamente, soltou a voz:
— Quem diria, hein, Nunes!? Eu era comunista. Agora estou à direita do Roberto Campos!
O restante da mesa fez de conta que nada ouvira. Uns 30 espectadores nas proximidades não seguraram o riso. Nos dois minutos seguintes, Francis passeou os olhos pela figura do escritor famoso. “Pois é…”, murmurou. Foi subindo o tom a cada sílaba. “Todo bonitão, cabelo de sobra, cada fio em seu lugar…” E então berrou: “Terno bem cortado, jeitão de gente fina… Mas fugiu com a tia, porra!”
Pedi a Francis que fosse comigo até o banheiro. Quando voltamos, Roberto Campos e Vargas Llosa tinham sumido. Nunca mais vi de perto o imenso escritor que partiu. Não houve aquela conversa de pelo menos meia hora. Nem haverá.
Augusto Nunes - Revista Oeste