sexta-feira, 16 de maio de 2025

'Outro 7 a 1', por Augusto Nunes e Eugênio Goussinky

 A turma que disputa o comando da CBF merece abrir o desfile do bloco dos cafajestes 


Capa da Revista Oeste, edição 269. Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil


Gilmar Mendes, ministro do STF | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Em outubro de 2024, durante uma sessão do Supremo Tribunal Federal, uma curta troca de frases entre Gilmar Mendes e André Mendonça avisou que não seria boa ideia colocá-los na mesma mesa no jantar daquela noite. Tal impressão foi emitida não pelo que disseram — até porque ambos frequentemente recorreram a um juridiquês impenetrável. Bem mais reveladores do que as palavras ditas foram o tom de voz (na fronteira da rispidez) e a ironia que discordava do meio sorriso. Ficou claro que o tema da conversa era a Confederação Brasileira de Futebol, vulgo CBF, permanentemente convulsionada pelo comportamento de dirigentes e frequentadores. 

— Vossa Excelência entende de extravagâncias mais do que eu — disse na penúltima fala o decano do Supremo. 

— Pode ter certeza que não, ministro Gilmar — retrucou Mendonça. — Pode ter certeza que não, porque quando eu me deparei com esses fatos… A impressão que dá é: resistiria a CBF a uma investigação?

Gilmar Mendes foi relator do processo que reconduziu o presidente da CBF ao cargo - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A troca de farpas parou por aí. A sequência de “extravagâncias” — palavra que na linguagem dos ministros também se presta a designar alguma decisão ou ato fora da curva, discutível, duvidoso — cresceu em velocidade e ousadia. A mais recente, de novo arquitetada por Gilmar, foi ignorar o afastamento decretado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e manter Ednaldo Rodrigues na presidência da CBF.

(Antes que a disputa pelo comando da CBF fornecesse o pretexto para a entrada em campo do Timão da Toga, os supremos juízes haviam dado as caras no mundo da bola uma única vez desde o nascimento da Corte. Foi um desempenho bisonho. Incumbido de decidir em última instância qual time de futebol conquistara o título de campeão brasileiro de 1987, reivindicado pelo Flamengo e pelo Sport, o Pretório Excelso demorou 37 anos para concluir o caso. “A Segunda Turma decidiu por unanimidade que foi o Sport”, anunciou em maio de 2024 o ministro Dias Toffoli. Torcedores pernambucanos voltaram a festejar o que celebraram no século anterior. A decisão não foi acatada por um único e escasso flamenguista.) 

Deve-se também registrar que, desde o primeiro apito inicial, a maioria dos cartolas do autodenominado País do Futebol nunca foi grande coisa. Mas a subespécie inaugurada com o nome de Ricardo Teixeira merecia abrir o desfile dos mais lastimáveis blocos dos cafajestes, tendo à frente o instabilíssimo Ednaldo Rodrigues. Quando a primeira palavra desta reportagem foi escrita, era ele o presidente da CBF. No segundo parágrafo, perdera o cargo. No sexto, fora substituído por Fernando Sarney, um dos vices de Ednaldo. 

No décimo, acabara de enviar um recurso ao Supremo pedindo a devolução do trono confiscado. Neste momento, enquanto reza para que a reivindicação seja julgada por Gilmar, espera uma ligação de Carlo Ancelotti para jurar ao perplexo técnico italiano que o contrato assinado há poucas horas vai ficar mais atraente assim que for resolvido o pequeno problema criado por desembargadores fluminenses mal-informados.


Ações levantam suspeitas sobre falsificação de assinatura em acordo que garantiu Ednaldo Rodrigues na presidência da CBF | Foto: Rafael Ribeiro/CBF

Ednaldo é o espécime mais recente do criadouro de obscenidades inaugurado por Ricardo Teixeira. No cargo entre 1989 e 2012, Teixeira alojou a entidade num conveniente limbo alojado entre o público e o privado. A rigor, os dirigentes dessas entidades nacionais obedecem às normas da Fifa. Essa sensação de impunidade explica por que presidentes da CBF agem com a desfaçatez de um fora da lei. A autoconfiança excessiva acabou induzindo Teixeira a protagonizar bandalheiras que o obrigaram a interromper o longo reinado. 

Todos envolvidos em recebimento de propinas, enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro e negociatas prodigiosas, os sucessores de Teixeira tropeçaram em tribunais tanto aqui quanto fora do Brasil. Foi o caso de José Maria Marin, capturado na Suíça em 2015 e engaiolado nos Estados Unidos. Marco Polo Del Nero, que comandou a CBF de 2015 a 2017, foi punido por corrupção e banido do futebol pela Fifa. Rogério Caboclo (2019-2021) foi despejado do emprego cobiçadíssimo por denúncias de assédio moral e sexual. Chegara a vez do baiano Ednaldo. Era ele o mais velho entre os vice-presidentes. Promovido, fez o diabo para mostrar-se mais esperto e mais moderno que todos os antecessores.


Da esquerda para a direita, os presidentes Ricardo Teixeira, José Maria Marin, Marco Polo Del Nero e Rogério Caboclo - Fotos: Reprodução/Wikimedia Commons

Ministro do STF, Gilmar Mendes também se convencera de que era hora de modernizar o Instituto Brasiliense de Direito Público, ou simplesmente IDP. Nascido em 1998, deveria limitar-se a estudantes de distintas áreas do Direito. Até 2016, foi financiado por grandes empresas, como a J&F, e estatais do porte da Caixa Econômica Federal. Em junho de 2017, Gilmar entregou a direção ao filho Francisco Mendes, o Chico. 

Sem descuidar de lucrativos seminários internacionais nem de eventos como o Gilmarpalooza, o herdeiro tratou de buscar sócios para a exploração de filhotes do IDP — e para empreendimentos que ampliassem o faturamento. Assim surgiu a CBF Academy, braço educacional da CBF administrado pelo IDP, responsável pela gestão e comercialização dos serviços oferecidos pelo fruto da parceria. Uma cláusula estipula que o IDP ficaria com 84% da receita — a CBF, com 16%. Em 2023, a receita foi de R$ 9,2 milhões.


Francisco Mendes, filho do ministro Gilmar Mendes | Foto: IDP/Divulgação

Atento ao eleitorado, Ednaldo aumentou de R$ 50 mil para R$ 215 mil os repasses mensais às federações estaduais, distribuiu donativos, passagens aéreas e diárias em grandes hotéis, presenteou com diárias de marajá seus convidados especiais para a Copa do Catar. Depois de completar o mandato do titular destituído, manteve-se no cargo com o apoio de 100% do eleitorado. Duas vezes tentaram derrubá-lo. Duas vezes Gilmar recolocou-o no gabinete imenso. 

Pagou R$ 5,7 milhões à vista a um advogado maranhense que obteve em um único dia um tipo de liminar que o tribunal leva ao menos 55 para examinar. Em dezembro de 2023, Ednaldo foi destituído pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Em janeiro, Gilmar determinou o retorno de Ednaldo ao cargo. Outras investidas contra o supercartola colidiram com a mesma barreira. Na mais recente, o relator deveria ser André Mendonça. O presidente Luís Roberto Barroso optou pelo sorteio. Deu Gilmar, claro.

Um acordo entre a CBF e as partes reclamantes no TJ-RJ, homologado por Gilmar em março de 2025, permitiu que Ednaldo disputasse a eleição cujo resultado deveria mantê-lo no comando até 2030. A esperteza derrapou nas evidências de que foi falsificada uma assinatura sem a qual não tem validade o acordo que permitiu a votação. O que fará o decano?

Em 1984, o Brasil foi dormir com Tancredo Neves pronto para a posse e acordou com José Sarney com a faixa presidencial no peito. “É o túnel no fim da luz”, resumiu Millôr Fernandes. Se não desistir do combinado, o técnico Carlo Ancelotti terá de trocar um Ednaldo por outro Sarney. Não há perigo de melhorar.




Augusto Nunes e Eugênio Goussinky - Revista Oeste