Ricardo Lewandowski: “resolver o problema da superlotação é dever de todos”| Foto: Pedro França/Senado
Desde que foi implementada em âmbito nacional por Ricardo Lewandowski, futuro ministro da Justiça, há 8 anos, a audiência de custódia já levou à liberdade 566.576 pessoas presas. A concessão de liberdade ocorreu em 40% das 1.422.200 audiências de custódia realizadas de 2015 até hoje. O procedimento, que consiste em levar um preso em flagrante à presença do juiz em 24 horas, para que sua detenção seja avaliada, é considerada a maior realização de Lewandowski no Supremo Tribunal Federal (STF), que ele presidiu entre 2014 e 2016.
Os números foram extraídos nesta quarta-feira, 17 de janeiro, do sistema do Sistac, sistema público do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atualizado diariamente por juízes e tribunais estaduais e federais de todo o país.
Fonte: Conselho Nacional de Justiça| Fonte: Conselho Nacional de Justiça
Lewandowski e defensores da audiência de custódia dizem que ela é uma medida humanitária, pois possibilita a soltura imediata de quem tenha sido preso sem os requisitos exigidos pela lei e pela Justiça, ou de forma abusiva, com tortura ou maus-tratos por parte de policiais. Mais do que isso, afirmam abertamente que ela é um instrumento para o “desencarceramento”, política que prega, basicamente, o esvaziamento das penitenciárias, de modo a deixar nelas, teoricamente, só criminosos que pudessem representar perigo real para a sociedade.
Já os críticos dizem que, ao longo do tempo, a audiência de custódia acabou favorecendo a criminalidade e, pior ainda, desmotivando e inibindo os policiais que fazem as prisões. Para esses críticos, muitos presos acusam falsamente os policiais de maus-tratos apenas para conseguir a soltura – de tabela, ao ficarem sujeitos a punições internas, os policiais passam a ficar receosos de efetuar as prisões, para não sofrerem com processos injustos.
Por essa razão, a entrada de Lewandowski no Ministério da Justiça e Segurança Pública vem causando apreensão em parlamentares ligados à segurança pública, que temem que, no Executivo, ele possa aprofundar políticas que estimulam a soltura de presos, como a audiência de custódia, e intensifique a fiscalização abusiva sobre as polícias.
“É uma porcaria jurídica que inventaram. Hoje a maior fonte de desmotivação dos operadores da segurança pública é a audiência de custódia. Esses dias vimos uma juíza oferecer cafezinho e casaco para um bandido preso numa audiência de custódia, e a OAB em seguida homenageou a juíza. Estamos vivendo numa fase em que o bandido passa a ter mais direito que o cidadão. O Lewandowski tem essas bandeiras, não tem como dar certo”, diz o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF), coronel na Polícia Militar, um dos mais antigos parlamentares da bancada da segurança e nome forte para ocupar a comissão temática da área na Câmara neste ano.
Para o procurador Marcelo Rocha Monteiro, do Ministério Público do Rio de Janeiro, a audiência de custódia foi implementada de maneira equivocada no Brasil por integrar, de forma explícita por parte de seus defensores, a política de desencarceramento. Para ele, há uma “premissa absolutamente equivocada de que o Brasil prende demais”.
“O Brasil prende o criminoso em cerca de 10% dos casos de homicídio, menos de 5% dos casos de roubo (e são cerca de 3 milhões de roubos por ano), e assim por diante. Qualquer brasileiro morador do Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e outras capitais sabe que o problema do país não é o excesso de criminosos presos, e sim o excesso de criminosos soltos”, diz o procurador.
“O que há é um problema sério de déficit de vagas no sistema carcerário, mas a construção de novas unidades prisionais é sistematicamente boicotada por ONGs de "defesa de direitos humanos", partidos de esquerda e todo um ecossistema que enxerga o criminoso como uma "vítima da sociedade" e que alega que "prender não resolve". Para essa visão, a solução não é construir mais vagas, e sim soltar os infratores, sob os mais diversos pretextos”, afirma ele.
Os dados do CNJ mostram que, nas 1.422.200 audiências de custódia realizadas desde 2015, os juízes determinaram a prisão preventiva de 851.528 presos em flagrante. Ou seja, em 60% dos casos, eles continuaram presos – não quer dizer que permaneceram até hoje na cadeia, pois há incontáveis habeas corpus que podem ser impetrados para que sejam libertos antes da condenação definitiva. Em 110.903 dos casos de prisão em flagrante analisados nas audiências de custódia (7,7%), houve constatação de maus-tratos ou tortura por parte dos policiais.
Histórico da audiência de custódia
A audiência de custódia é um instituto previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), aprovada em 1969 e internalizada pelo Brasil em 1992. “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, diz a regra internacional.
Em 2015, quando também presidia o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, Lewandowski lançou um projeto para nacionalizar o instituto, que já era aplicado pela Justiça de São Paulo há alguns anos de forma parcial. O ministro passou a visitar vários estados para organizar os tribunais para universalizar o procedimento.
“Ao desenvolvermos esse projeto, vamos conseguir mudar completamente a realidade horrorosa das prisões no Brasil. Faço um apelo para partirmos na frente, mostrando que o Judiciário tem condições de fazer coisas novas”, disse Lewandowski à época, durante reunião com todos os presidentes de tribunais estaduais do país. Naquele momento, o Brasil tinha 600 mil presos, situação “insustentável” na visão do ministro. “Precisamos nos conscientizar sobre a importância da audiência de custódia, pois resolver o problema da superlotação é dever de todos e isso não é algo conquistado do dia para a noite. É importante que façamos esse esforço para que nos tornemos exemplo para o mundo”, disse ainda, em maio de 2015.
Naquele mesmo ano, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) contestou a validade do instituto no STF e perdeu. Eles alegavam que somente uma lei federal, de iniciativa do Executivo, poderia implementar a medida. A maioria dos ministros aprovou a audiência de custódia e, setembro de 2015, ao julgar uma ação do PSOL, o STF determinou que todos os juízes passassem a realizá-la.
Em 2019, a audiência de custódia foi finalmente regulamentada em lei, dentro do pacote anticrime – a proposta original do então ministro da Justiça, Sergio Moro, não contemplava o instituto, que foi incorporado ao projeto de lei por deputados de esquerda sob influência de advogados e juízes garantistas. A norma não apenas tornou obrigatória, mas também abriu brechas para que a liberdade fosse concedida se a audiência não ocorresse em 24 horas. Os responsáveis pela não realização, policiais ou juízes, ainda ficam sujeitos a punição.
Em março de 2023, o STF determinou que as audiências de custódia fossem realizadas em todos os tipos de prisão, não só as executadas em flagrante. Com isso, pessoas presas de forma preventiva ou temporária (antes da condenação, para evitar fuga, prejuízo às investigações ou prática de novos crimes), para serem extraditadas e para iniciarem o cumprimento de pena, após condenação definitiva, também passaram a ter a prisão avaliada em 24 horas.
Congresso ainda tenta restringir medida
Desde sua implementação nacional, o Congresso tentou se insurgir contra a audiência de custódia. Ainda em 2016, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) apresentou projeto de decreto legislativo para sustar a norma do CNJ. Apontou inconstitucionalidade formal e argumentou que a audiência de custódia promoveria uma “inversão de valores e papéis”.
“A prática reiterada de atos criminosos gera sensação de impunidade, que estimula os criminosos, apavora os cidadãos e acarreta aos policiais um sentimento de impotência, frente ao retrabalho diário a que estão submetidos esses profissionais. As audiências de custódia, instituídas por ato normativo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão integrante do Poder Judiciário, agravaram tal sensação ao estabelecer uma inversão de valores e papéis em que os investigados passaram a ser, prioritariamente, os agentes policiais responsáveis pelas prisões, e os criminosos de fato foram travestidos de vítimas em potencial, independente da natureza ou gravidade da infração penal praticada”, disse na proposta.
Com o tempo, o projeto perdeu força e ficou parado, especialmente a partir de 2019, quando a audiência de custódia foi aprovada em lei, dentro do pacote anticrime.
Nos últimos anos, a oposição passou a defender regras mais restritivas para sua realização. Há um projeto na Câmara, por exemplo, do deputado Kim Kataguiri (União-SP), para impedir a concessão de liberdade provisória de criminosos reincidentes e que cometem crimes reiteradamente. No Senado, há proposta para tornar obrigatória a audiência de custódia apenas nos casos em que o acusado não é reincidente ou tem bons antecedentes. Apresentados entre 2022 e 2023, os projetos ainda estão em fase inicial.
Renan Ramalho, Gazeta do Povo