sexta-feira, 8 de maio de 2020

"Operação carne fraca", por Guilherme Fiuza

Um possível diálogo entre 
dois possíveis conhecidos
personagens


Conversa republicana no escurinho do confinamento:
— Olá, doutor.
— Olá.
— Achei que não se importaria se ligasse direto pro seu celular.
— Já ligou, excelência. Qual é o assunto?
— O senhor está bem?
— Estou. E o senhor?
— Se melhorar, estraga.
— Qual é o assunto, excelência?
— Doutor, o senhor está bem mesmo? Quero dizer, está satisfeito com seu trabalho?
— Nunca estou satisfeito. Acho sempre que posso fazer melhor.
— Imaginei. O senhor não está tendo as condições necessárias para fazer seu trabalho.
— Eu não disse isso.
— Claro que não, doutor. O senhor jamais diria isso. Por isso estou dizendo pelo senhor.
— Qual é o assunto, excelência?
— É esse mesmo. O senhor poderia estar satisfeito em outro lugar.
— Estou no lugar em que quero estar.
— Eu não esperava ouvir outra coisa do senhor, doutor. Nem eu nem meus parceiros que têm planos bem maiores para o senhor. Sabemos que o senhor também tem. O problema é deixar passar a hora certa.
— Como assim?
— Seu chefe já era. Vai ficar se arrastando em público, morto-vivo. O senhor é muito melhor que ele, mas não pode se deixar associar demais a essa figura… Como direi? A essa figura lamentável. Saia enquanto é tempo e garanto que terá tudo a seus pés.
— Excelência, não estou à venda.
— Claro que não. Sei muito bem disso. O senhor não tem preço. Nossos parceiros jamais investiriam em alguém que estivesse à venda.
— Que parceiros?
— Ora, doutor. O senhor sabe… Parceiros generosos que serão seus também. Basta o senhor querer.
— Meus parceiros são minha equipe de trabalho.
— Sem dúvida. No meio do fogo cruzado, apanhando da grande mídia, tendo que matar um leão por dia em defesa de um monte de gente anônima que jamais vai te convidar pra uma festa numa cobertura em Ipanema ou te condecorar na ONU pra você chegar em Davos como um rei, paparicado pela imprensa internacional e pelos milionários dispostos a turbinar quantas ONGs você queira criar. Sabemos que o senhor pensa grande, está cansado dessa jornada de peão ao lado de um bando de brucutus e sabe que isso não é vida.
— Vida é missão.
— Tá bom, doutor. Preciso desligar porque estou atrasado pra uma reunião.
— Fica um pouco mais.
— Ah, agora sim. Pedindo com jeitinho eu fico.
— Tenho me sentido tão só.
— Desenvolve.
— Ninguém me compreende.
— Certo. E seu chefe?
— É rude e não me dá condições satisfatórias de trabalho.
— Tá pouco.
— Autoritário.
— E a democracia?
— É contra.
— E a corrupção?
— É a favor.
— Ah, melhorou. Então você não aguenta mais e quer denunciar esse descalabro em nome da lei?
— Quero.
— Não ouvi.
— Quero!
— Coisa linda. Sabia que poderia confiar em você.
— Estamos aí. Vida é missão, por isso é que…
— Chega, parceiro. Já passamos dessa parte.
— Tem razão, me confundi.
— Não tem problema. Em sua nova vida você nunca mais vai precisar repetir esse texto. Basta fazer tudo direitinho.
— Tá. E eu vou ter uma imprensa que nem a do Rodrigo Maia?
— Pode me cobrar. Você vai ser praticamente o novo Rodrigo Maia.
— Poxa, obrigado pela oportunidade.
— Você merece. Teve que aturar muita gente chata na vida, agora é a hora de desfrutar.
— Oba!
— Só mais uma coisa.
— O quê?
— Estou me aproximando de um grande brasileiro que apreciaria muito um gesto seu.
— Que brasileiro? Que gesto?
— O Lula. Se importa de pedir desculpas a ele?
— Problema nenhum.
— Tá. Diz que o governo dele era mais democrático que o atual, e fica tudo certo.
— Fechado. Chega de fascismo.
— Viva a resistência democrática.
— Viva!
Revista Oeste