domingo, 23 de setembro de 2018

"A esquerda devora a si mesma e engole mais um, Ian Buruma", por Vilma Gryzinski

Não está fácil ser de esquerda pura e dura ultimamente. Se o renascimento da direita, desde mundo civilizado até as nossas plagas, infundiu um novo ânimo a seus antagonistas naturais, os autodenominados progressistas também se entredevoram em disputas obscuras, no mundo acadêmico e outros nichos.
Feministas radicais contra todo mundo que tenha cromossomo Y, outras feministas radicais “contra” transgêneros – defendendo que ninguém pode se “tornar” mulher sem passar pelo vale de lágrimas que enxergam na condição feminina – são um dos desdobramentos mais curiosos dessas lutas internas.
Germaine Greer, a veteraníssima autora de A Mulher Eunuco, foi até impedida de dar palestras. De modo geral, ela está à esquerda de Pol Pot, mas também não liga para as sensibilidades contemporâneas.
Embora apoie o movimento #MeToo e a denúncia imediata de qualquer tipo de abuso sexual, Greer cutucou a onça com curtíssima vara.
“Quando homens com grande poder econômico como o produtor Harvey Weinstein são os abusadores, a coisa muda, disse ela. “Se você abre as pernas porque ele diz ‘seja boazinha e te dou um papel num filme’, isso equivale a consentir e agora é tarde demais para ficar reclamando”.
O #MeToo também derrubou o fino, equilibrado e elegantemente progressista Ian Buruma, escritor holandês radicado nos Estados Unidos, onde havia assumido a direção do The New York Review of Books.
É o mais importante jornal literário do mundo – só rivaliza com o inglês, sua ex-cria, em nomes, temas e reações entre o pessoal que usa paletó com reforços de couro nos cotovelos, o estereótipo do professor universitário/escritor encastelado na academia.
Buruma caiu por três motivos. Primeiro, achou que os casos de abuso não penalizados criminalmente abriam um terreno instigante para discussão. Como é ser acusado, perder o emprego, a carreira, a reputação?
Segundo, achou que a discussão poderia ser travada em termos racionais e até provocativos, entre adultos, esquecendo-se que o “autoritarismo liberal” é um fenômeno em plena expansão.
Terceiro, fez tudo isso no momento em que os Estados Unidos estão mesmerizados com o caso de Brett Kavanaugh.
Nomeado por Donald Trump para a Suprema Corte, estava a um passo da aprovação quando apareceu uma psicóloga dizendo que, durante uma cervejada entre adolescentes, foi agarrada e apalpada por ele num quarto escuro. Na época, ela tinha 15 anos e ele, 17.
O caso não permite dúvidas: Kavanaugh vai se ferrar. Qualquer questionamento à acusadora, Christine Blasey Ford, será considerado uma prova irrefutável de machismo. Os mais de trinta anos transcorridos desde e episódio denunciado? Contextualização? Esclarecimentos?
À falta de uma reviravolta cinematográfica, nada será possível.
Quem está com Trump, vai ter que enfiar a viola no saco para não parecer um misógino hediondo. Quem está contra, já saboreia de canudinho a cabeça do juiz.
SELVAGEM DO SEXO
Buruma, obviamente, é da turma contra Trump e acha, entre inúmeras outras definições refinadas e chiques, que “a retórica fascista está se infiltrando de volta”, num processo chamado de normalização.
Também já criticou as atuais “erupções de hipermasculinidade”, entre as quais inclui gestos que considera falsos de Trump, uma maneira de disfarçar um “homenzinho branco assustado por ter perdido o controle”. E outros blablablás sobre “machismo político” do tipo.
O que não o ajudou em nada quando abriu espaço para Jian Gomeshi, um jornalista canadense de origem iraniana, bonitão e bem sucedido, despachado para o Hades depois de ser acusado por várias ex-namoradas de dar tapas, socos e mordidas durante o sexo.
Como é praticamente impossível – sem os procedimentos investigativos habituais – diferenciar sexo selvagem de selvagem fazendo sexo, Gomeshi foi absolvido pela justiça canadense. Num dos casos, fez um acordo de conciliação.
Nem é preciso dizer que Gomeshi também é da tribo progressista e fazia o maior sucesso num programa de entrevistas de televisão.
”Eu me tornei uma hashtag”, era o título de seu artigo fatídico. Se passar por coitadinho não pegou bem para ele. E pegou muito pior para Buruma, que ainda deu uma entrevista defendendo sua decisão.
“É bem irônico: como diretor do New York Review of Books, publiquei um número dedicado aos perpetradores do tipo #MeToo que não haviam sido condenados pela justiça, mas sim pelas redes sociais.”
“Agora, eu mesmo fui condenado pelo Twitter, sem o devido processo legal.”
Bye, bye, Buruma. O escritor e ensaísta é um especialista em China e Japão – com duas esposas nipônicas no currículo – e provavelmente vai sobreviver fora do Olimpo literário onde estava há pouco tempo.
Talvez até descubra as delícias secretas do pensamento não dominado pelas amarras mais exageradas do politicamente correto, como aconteceu com a escritora Lionel Shriver (mulher, apesar do nome de homem).
Ela cometeu a loucura, do ponto de vista do universo da intelectualidade progressista, de criticar a Penguin Random House por se comprometer que até 2025 todos os livros publicados refletiriam a composição populacional da Grã-Bretanha, “levando-se em conta etnia, gênero, sexualidade, mobilidade social e deficiências”.
TURBA DIGITAL
Shriver, americana radicada em Londres e autora do livro que virou filme Precisamos Falar sobre o Kevin, acha que a editora deveria publicar os melhores livros que estivessem a seu alcance, não estabelecer cotas.
“A Random Penguin House não considera mais que sua raison d’être é a aquisição e disseminação de bons livros. Em lugar disso, pretende espelhar as porcentagens das minorias no Reino Unido com precisão estatística.”
Para piorar a situação, ela também disse que o manuscrito de “um transgênero gay caribenho que abandonou a escola aos sete anos” seria publicado quer fosse ou não “um monte de papel reciclado tedioso, incoerente e confuso”.
Foi massacrada. Agora, transformou-se em provocadora profissional. Seu último artigo na Spectator diz que a questão dos transgêneros tomou o lugar da causa homossexual como bandeira.
Vê muitas pessoas ansiosas, sussurrando que “talvez não seja certo dizer a crianças de três ou quatro anos que têm que ‘decidir’ a qual gênero pertencem, numa idade em que sequer compreendem o que é gênero”.
Ou que talvez operações de mudança de sexo não sejam invariavelmente “a cura para problemas que sobrevivem intatos à cirurgia”.
Pode ser até que exista um contexto social induzindo a disseminação dos casos de transgêneros?
Nossa, se Lionel Shriver continuar assim vai acabar acreditando na “ideologia de gêneros”. Um perigo.
Talvez até, quem sabe, Ian Buruma, entre para a turma dos que preferem estudar, conhecer e escrever sobre situações complexas, com todas as nuances, sem medo das fogueiras da turba digital.

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