terça-feira, 27 de setembro de 2016

Valentina de Botas: O crime contra Francenildo foi a concretização no varejo do projeto totalitário da súcia

Veja


O STF rejeitou não uma condenação a Palocci, 

mas a simples abertura de processo



No registro da minha repulsa ao PT, posso ter passado a impressão de que tenho alguma coisa pessoal contra Lula e Dilma. Procuro, com este texto, desfazer essa eventual impressão e esclarecer tudo: tenho, sim, um problema pessoal com Dilma Rousseff e Luís Inácio Lula da Silva. Como ministra, Dilma, a anoréxica devoradora de livros, preferia a leitura de dossiês que miravam as pessoas de Ruth Cardoso e Fernando Henrique. Como candidata, não repudiou a quebra do sigilo fiscal de José Serra (da filha e do genro dele), durante a campanha, porque ele se atrevera a disputar uma eleição com ela. Adversários, para o petismo, são um efeito colateral da democracia burguesa a ser evitado. Presidente, chefiou um governo em que a Polícia Federal assassinava reputações, conforme denunciou Tuma Jr. sem ser desmentido ou processado.
É verdade que o PT não inaugurou torpezas na política nem inventou a corrupção, blablabla que os incuráveis repetem. A organização criminosa que pretendeu substituir a sociedade e fez do governo mero acesso ao Estado para sustentar o partido, só usou e abusou da corrupção e demais canalhices de modo tão inédito que os meios se fundiram aos fins e o partido roubava para continuar no poder para continuar roubando para continuar no poder. Na crônica da sordidez inédita na nossa história, considero um momento especialmente torpe quando Lula presidente acionou a máquina do Estado contra um cidadão que contou o que viu: Francenildo Pereira, o caseiro do todo poderoso ministro Antônio Palocci, lançando luz sobre os subterrâneos da organização criminosa que saqueava nossa grana e a institucionalidade num colossal golpe contra a democracia.
Francenildo, que teve o sigilo bancário violado por Jorge Mattoso à procura de uma movimentação financeira que provasse que o pobre rapaz estava a soldo da oposição, foi moído pelo Leviatã: o caseiro é o verdadeiro trabalhador humilde perseguido na história recente, e não o jeca que anda de jatinho paparicado por alguns dos advogados mais caros do país. Era o Estado policial fascista não mais como projeto, mas aplicado.   Assim, assumi a coisa como pessoal e me coloquei no lugar de Francenildo porque eu e qualquer outro cidadão que contrariassem o degenerado Leviatã petista poderíamos estar no lugar de Francenildo, a outra face da mesma cara medonha do projeto petista.
O STF rejeitou não uma condenação a Palocci, mas a simples abertura de processo, por um placar apertado. Ora, há o relato factual do encontro entre o ex-ministro e o infame Jorge Mattoso presidente da Caixa Federal, onde Francenildo era correntista. Palocci o convocara porque soubera por Tião Viana que o caseiro recebera um vultoso depósito, que se provaria lícito. Passar o caso para o Coaf? Não, nada de instituições, a coisa era entre indivíduos que se apoderaram delas e moeriam os indivíduos deixados à margem. Num segundo encontro, Mattoso levou o extrato a Palocci, consumando a coisa.
E a coisa se abate contra qualquer um de nós e sobre nenhum deles. E a coisa é pessoal porque é o esmagamento da consciência com o indivíduo dentro porque a ele não é atribuído valor, nem a ela: à consciência dos francenildos é atribuído perigo, daí o esmagamento. Daí o crime contra Francenildo ser já a concretização no varejo do projeto totalitário da súcia, a cara desfigurada pelo gozo sujo no modelo caudilhista e fascistoide, que troca leis por um homem – um líder. Este líder jeca que pariu a era da canalhice tem uma dívida pessoal com cada brasileiro.
Dez anos depois, aquela luz tênue refulge e ilumina o caminho do ex-ministro para a cadeia. Pode ser que saia nos próximos dias, mas ele é mais um petista que, uma vez trazido à luz, se desfaz como vampiro de cinema. Quem cacareja hoje o “fora, Temer” não reconhece o golpe obsceno e explícito que vigorou por 13 anos contra a democracia e prefere enxergá-lo na destituição legal, legítima e tardia da parva espertalhona.
Entre tantas analogias possíveis em que o grande enfrenta o pequeno, penso em Antígona, no simbolismo da minha personagem trágica preferida. Como Francenildo, Antígona desafiou o Estado quando este lhe negou direitos de cidadã para enterrar Polinices, o irmão que morrera lutando contra a Tebas governada pelo tirânico Creonte, tio deles. De dentro da caverna onde foi deixada para morrer pela ousadia, ela inaugurou o indivíduo jogando luz sobre o Estado tirânico que ruiria.
Não sei onde anda Francenildo, mas espero que o único homem pobre verdadeiramente perseguido possa contemplar, afinal, aquela luz refulgir para a ruína dos algozes da democracia insuportavelmente longevos.