quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Rubens Barbosa: "Mercosul passado a limpo"

O Estado de São Paulo

A China está ocupando o lugar dos EUA na América do Sul e nós, vendo a banda passar

Os países-membros do Mercosul perderam tempo demais discutindo a questão da presidência do grupo e o que fazer com a Venezuela. A repressão do governo venezuelano aos manifestantes que marcharam para Caracas pedindo a substituição do presidente venezuelano e o adiamento do referendo revocatório mostram o acerto da posição brasileira de suspender esse país do grupo pelo não cumprimento dos compromissos assumidos há dez anos, inclusive o Protocolo de Direitos Humanos.
Os esforços do governo brasileiro devem concentrar-se naquilo que interessa ao Brasil e aos demais membros fundadores: como fazer o Mercosul voltar ao que era inicialmente.
Instrumento de liberalização de comércio e de abertura de mercado, como está previsto no artigo 1 do Tratado de Assunção, o Mercosul desempenhou papel importante no contexto das negociações comerciais e no comércio exterior brasileiro até 2003. Seguindo uma agenda partidária nos últimos 13 anos, contudo, o grupo foi desfigurado, está paralisado e vem gradualmente perdendo o interesse do setor privado. Hoje o Mercosul, que representou mais de 16% do comércio externo brasileiro, absorve menos de 9%.
Não vejo como adiar um reexame profundo sobre a sua efetividade. Tenho sido um dos críticos dos retrocessos no processo de integração durante os governos lulopetistas e acho que o processo negociador deve levar em conta a situação real da economia mundial e da economia brasileira. E, também, as grandes modificações que estão ocorrendo no comércio exterior. A visão de mundo influi nas análises, mas o que interessa é a defesa dos interesses concretos das empresas, dos exportadores e dos trabalhadores brasileiros.
Há um outro fator negativo, que pouco se discute, mas se transformou num dos principais obstáculos para a maior integração externa: a perda de competitividade da economia brasileira. O Brasil é competitivo até a porta da fábrica, mas quando o produto a deixa e chega ao porto carrega mais 30% de custo Brasil.
A estratégia de integração regional nos últimos 13 anos foi contrária aos interesses brasileiros, em parte, pelas políticas equivocadas seguidas pelo lulopetismo. Perdemos a liderança e nos juntamos à agendas que não são as nossas. O isolamento do Brasil nas negociações comerciais – resultado de uma estratégia com forte carga política partidária – está causando grandes prejuízos.
O mundo simplesmente mudou. Porque o Vietnã decidiu participar da Parceria Transpacífica e integrar-se às cadeias produtivas da Ásia? Os fluxos de comércio são outros.
Há alguns anos já, a China é nosso principal parceiro. E o Brasil segue presente nas cadeias produtivas de pouco valor agregado (na área agrícola). Nossa diversidade industrial multinacional – caso o custo Brasil fosse reduzido – poderia facilitar a integração às cadeias de maior valor agregado, como ocorre com poucas de nossas empresas, como a Embraer.
Olhando para a frente, nos próximos 10, 20 anos, o Brasil vai crescer e o Mercosul se tornará pequeno para nossas ambições comerciais.
Mesmo o acordo com a União Europeia, se conseguirmos negociar bem, não vai abrir um mercado que possa ampliar significativamente a exportação de produtos brasileiros. As negociações com a União Europeia começam em outubro e levarão pelo menos dois anos para ser concluídas. Finalizada a negociação, a tradução do acordo e a necessidade de ser referendado pelos diversos Parlamentos exigirão mais cerca de dois anos, fora o tempo previsto (15 anos) para que a redução das tarifas alcance os produtos sensíveis.
Assim, teremos cerca de 20 anos para, com reformas estruturais, reduzir o custo Brasil e tornar o Mercosul efetivo, de forma a que volte a ser um instrumento de abertura de mercado. Se, em 20 anos, não conseguirmos restaurar a competitividade dos produtos industriais brasileiros, deixo ao leitor tirar suas próprias conclusões.
Quanto aos nossos objetivos estratégicos na América do Sul, é chegada a hora de muito mudar para retomá-los. Ficamos, durante os governos lulopetistas, a reboque dos acontecimentos, presos a afinidades ideológicas e a paciências estratégicas. Estamos perdendo espaço político e econômico na região. A China está ocupando o lugar dos EUA. E nós, da janela, vendo a banda passar.
Não estamos examinando as implicações da formação de uma área de livre-comércio na América do Sul em 2019 no caso de os países cumprirem os acordos firmados no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi). Para esses países, em 2019 o Mercosul desaparecerá e a Tarifa Externa Comum (TEC) deixará de ser uma proteção à indústria nacional. Sem regras de origem efetivas, nossos vizinhos poderão tornar-se plataformas de exportação para o Brasil.
Por tudo isso, o governo brasileiro deveria retomar a iniciativa junto aos membros fundadores do Mercosul e propor a convocação de conferência diplomática, prevista no artigo 47 do Protocolo de Ouro Preto, para rever as instituições do grupo e suas atribuições. Durante o encontro poderia ser definida uma nova agenda para ampliar a cooperação nas áreas de energia e agricultura, em que os países-membros têm vantagens competitivas se negociarem conjuntamente, e infraestrutura, em que haveria oportunidades significativas de investimento externo. A nova agenda restabeleceria a prioridade comercial do grupo, com a eliminação gradual das restrições e exceções à TEC – aplicável apenas a cerca de 35% das trocas intra-Mercosul –, facilitação dos fluxos comerciais, normas de origem, convergência regulatória e o estudo da flexibilização das regras para agilizar as negociações de acordos comerciais.
Parafraseando Nelson Rodrigues, a desintegração regional e os problemas do Mercosul comercial não se improvisam, são obra de 13 anos de má política. Chegou a hora de enfrentá-los.