Leonardo Lichote - O Globo
Compositor faz show no Rio neste sábado e anuncia portal que reunirá seu acervo
De sua mesa, o bancário Paulo Cesar Baptista de Faria, de 22 anos, viu chegar um cliente que sabia conhecer de algum lugar, mas não se lembrava de onde. Alguns minutos depois, vencendo a timidez, abordou o homem. Ele se chamava Hermínio Bello de Carvalho e também reconheceu o jovem, mas também não recordava de que ocasião. A chave veio quando o bancário disse: “Meu pai é músico, ele toca com Jacob do Bandolim”.
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— Aí lembramos que uma vez, em 1959, estivemos juntos na casa de Jacob — conta Paulinho da Viola, como o bancário se tornou conhecido. — Hermínio me disse: “aparece lá em casa”. Eu fui, ele perguntou se eu fazia sambas. Eu tinha um ou outro, mas não me ligava nesse negócio de composição. Eu gostava de tocar, acompanhar os outros. Queria ser um violonista como meu pai. Mas Hermínio me deu duas letras e disse: “Vê se você consegue musicar”. Eu fiz as duas, “Valsa da solidão”, lançada pela Elizeth Cardoso, e “Duvide-o-dó”, que Isaurinha Garcia gravou e eu fui cantar só em 1998 (no show “Sinal aberto”, com Toquinho, lançado em 1999 como CD ao vivo). Pouco tempo depois, Hermínio me levou ao Zicartola pela primeira vez.
A ida ao restaurante de Cartola e Dona Zica, em 1964, é tomada por Paulinho como o marco inicial de sua carreira — lá, ele conheceu mestres como o anfitrião, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento e Zé Kéti, tocou e passou a colaborar com eles (“Naquele ano, apareci numa foto no jornal pela primeira vez, só uma parte do meu rosto, de perfil, acompanhando Cyro Monteiro”, lembra). Agora, Paulinho celebra 50 anos de trajetória com um novo show — a estreia é sábado, no Vivo Rio — e um ambicioso portal (a ser lançado até o fim do ano), que reunirá, além de seu acervo digitalizado (fotos, manuscritos, reportagens), vídeos exclusivos nos quais o artista interage com fãs e programetes também produzidos especialmente para o site, entre outras atrações.
— Não sou muito dessas coisas de comemorar 40, 50, 60... Mas a turma dá aquela força, você vai e faz. É uma comemoração — conta Paulinho.
MULHER E FILHOS ENVOLVIDOS
A turma, no caso, é a família. O projeto das ações comemorativas foi pensado literalmente dentro de casa — e sessões do portal, como “Na intimidade” ou “TV canto de sala”, reforçam esse caráter. A ideia da celebração vem sendo gestada há três anos por Lila Rabello (mulher e empresária de Paulinho), Cecília Rabello (filha do casal) e Rodolfo Soares. Outros filhos também estão envolvidos: Pedro Rabello é o responsável pela administração financeira da produtora do artista, a Rabiola Produções; João Rabello e Beatriz Rabello participam do roteiro do show e preparam um espetáculo em dupla que também entrará no pacote das celebrações.
O acervo está em processo de digitalização. São 50 anos de história registrados em imagens como Paulinho adolescente, posando com um violão, em casa — talvez na idade que cantou em seu clássico “14 anos”. Ou em ensaios com Clementina de Jesus e Elton Medeiros — colegas do “Rosa de Ouro”, espetáculo histórico produzido em 1965 por Hermínio — para um show que fariam no Senegal. Ou ainda no programa do Chacrinha e nos festivais da canção. Um passado — que, como o compositor não cansa de afirmar, vive nele, e não o contrário — saído de caixas e pastas que ele manuseia, na sala de sua casa, enfileirando lembranças.
Entre sua coleção de chapéus (“Alguns que usei para desfilar, tem um pequeninho, da ala de compositores da Portela, de 1966”), prêmios, quadros (“Aquele ganhei de presente do Lan”, diz, apontando para o desenho de um bacalhau vestido com a camisa do Vasco da Gama, seu time), ele mexe em pastas de rascunhos e solta algumas dessas memórias.
— “Bebadosamba” (disco de 1996) é um pouco derramado, tinha um caráter antigo. Era algo proposital — diz ele, mostrando um poema/letra inédito no qual reflete sobre saudade (“Pergunte ao João se ele sente saudade do samba do Olavo, do Geraldo ou do Orlando”, que cita os cantores João Gilberto e Orlando Silva, além dos compositores Raimundo Olavo e Geraldo Pereira).
Os nomes de Noel e Sinhô anotados no pé da letra original de “Memórias conjugais”, maxixe gravado no álbum “Bebadosamba”, apontam para esse desejo de lembrar o passado. A letra tem versos como “Eu não sou Zé Mané”, não registrado na versão que foi para o disco. O texto quase sem rasuras comprova a informação de Paulinho de que a canção foi escrita de uma vez só.
O aspecto retrospectivo também estará inevitavelmente presente no show que estreia neste sábado. Paulinho ainda não definiu 100% do roteiro, mas indica direções ao falar do que pensa para o espetáculo.
— Quero tocar coisas que ou nunca toquei ou não toco há muito tempo. “Canção para Maria” talvez seja um bis. É minha primeira parceria com Capinam, com a qual ficamos em terceiro lugar no festival de 1966, atrás de “A banda” e “Disparada”. Minha avó sempre pedia para eu regravar essa música, registrada só para o festival. Ela adorava — conta Paulinho. — Tem “Coração da gente”, que nunca cantei ao vivo. O mesmo caso de “Botafogo, chão de estrelas”, que fiz com Aldir Blanc para o primeiro disco do Walter Alfaiate. Cantarei “Jaqueira da Portela”, do Zé Kéti, e minha “Roendo as unhas”, que não canto há muito tempo. Estou pensando também em fazer a primeira parte do “Bebadosamba”, que não canto desde 1997. Tem um choro, “Inesquecível”, que fiz em 1971, 1972, como uma lembrança de Jacob. E, claro, aquelas que não posso deixar de tocar, como “Dança da solidão”, “Tudo se transformou”, “Sinal fechado”, “Sei lá, Mangueira”, “Pecado capital”... Mas vou mudar, porque estou vendo aqui que não tem nenhuma do Valzinho, do Cartola...
'Tenho umas dez inéditas'
Entre os sucessos e as resgatadas do baú, Paulinho pode apresentar uma inédita, “Bloco do amor” (título provisório), que compôs para sua filha Beatriz gravar.
— Tenho umas dez inéditas, que vou guardar para o futuro disco. Estou pensando em tocar essa que fiz para a Beatriz, mas ainda vou mudar umas coisinhas. Costumo fazer isso. Tenho uma fita cassete com uma gravação de “Foi um rio que passou em minha vida”, eu fazendo o ritmo e Jards Macalé no violão. A linha melódica era completamente diferente da que foi para o disco — diz, cantarolando a melodia perdida no tempo, outra pérola de seu manancial de memórias.