Leonel Kaz - Veja

Cinquenta Anos Esta Noite é um relato aconchegante, íntimo, literário e, evidentemente, político sobre o golpe de 1964, a ditadura e o exílio vividos pelo “jovem” (como Jango o chamou) que presidia, aos 22 anos de idade, a então temida União Nacional dos Estudantes: José Serra.
1. “Uma coisa é saber da história segundo historiadores e outra é vê-la com os olhos que a viram”, escreveu o crítico Clarival do Prado Valadares. O livro de Serra, com o nervo ótico aberto e com bom-humor, percorre a história política brasileira, iluminando alguns quadros enevoados sobre a década de 1960 e o que dela resultou: Como entender um presidente, Jango, que se inibe de impedir a sua própria queda do poder?
2. O livro propõe reflexões políticas que já foram objeto de resenhas de Merval Pereira, no Globo, e de Celso Lafer, no Estadão. Curioso é perceber como o político, pouco afeito à intimidade pessoal, se revela por inteiro em episódios de cunho pessoal, hoje históricos. O livro é um comovido relato biográfico como se, às avessas de Getúlio, Serra tivesse saído da História para entrar na vida.
3. A obra parece um desses programas ao vivo de televisão, em que episódios se sucedem ininterruptamente, aos trancos e barrancos, repletos de acasos. Sua ida para o exílio, após o golpe de 64, apresenta o roteiro literário de um thriller de primeira linha: “Aquela quinta-feira, 2 de julho, foi estranha e melancólica. Às 17 horas, saí afinal da Embaixada da Bolívia, no Rio, o apartamento onde passara oitenta dias refugiado. Estranhei a movimentação das ruas, a luminosidade da paisagem e a vastidão do mar. O carro que me levou corria de maneira alucinante, provocando-me um princípio de vertigem. O aeroporto estava cheio de gente e o burburinho era constante, apesar do movimento relativamente pequeno. Mas eram impressões falsas. O carro não corria nem o aeroporto estava lotado. Meus sentidos é que tentavam se adaptar à passagem abrupta das semanas de confinamento para a vida livre, para a liberdade.”
4. A liberdade foi aquela vivida plenamente, nos anos 1960, quando Serra era interlocutor privilegiado junto a generais e ministros. O presidente da União Nacional dos Estudantes (a UNE) aparentava ter imenso poder: o da mobilização geral dos estudantes do país. O autor se revisita e propõe uma reflexão: “Embora o conflito politico-ideológico daquela época fosse muitíssimo mais acentuado do que no Brasil de hoje, havia bem mais interesse e tolerância nos debates nas universidades. É o contrário do que se vê nos dias que correm. Não é raro que dois supostos debatedores disputem apenas o posto de mais radical na mesa, como se o excesso de convicção tornasse certo o que está errado.”
5. A certeza, a dúvida, o espanto e a convicção de ser o mesmo sempre acompanharam o homem “casado com a política”, como transparece no relato da visita a uma amiga, quando de seu retorno, disfarçado” e às escondidas ao país, em 1965:
‘– Serra! Você aqui? Perdeu o juízo?’ “O espanto de Rita não era devido ao vasto bigode e, num arremedo de topete, ao cabelo que me caía para o lado – por mais que hoje pareça implausível, eu tinha cabelo. O conjunto me dava uma aparência um tanto estranha, especialmente para quem já me conhecia. Mas o espantoso mesmo era eu estar ali. ( …) Na mesma noite, desisti do disfarce. Raspei o bigode, penteei o cabelo para trás e voltei a ser eu mesmo.”
6. Como marca singular do autor, o livro serve um prato cheio para os hipondríacos e notívagos em inúmeras passagens: “Notívago e vocacionado para a gastrite, como eu, ele admirava a segurança com que dizia coisas, certas ou erradas. (…) Precavido (termo correto para um hipocondríaco sensato) eu andava com um frasquinho de mata-bactérias no bolso. (…) Acalmei-me e, apesar do banco duro, da gritaria, do frio da madrugada, da luz intensa e da minha crônica dificuldade para pegar no sono, dormi.
7. Serra viveu duplamente o exílio, do Brasil para o Chile e de lá, com a queda de Allende, para a Europa e Estados Unidos, onde se tornou doutor em economia em Princeton. Ali, escreveu uma tese não-publicada, que se torna objeto de releitura no livro: “Só agora, ao escrever estas reminiscências, peguei-a no alto da estante e a reli do começo ao fim. Veio-me um anseio lancinante e fugidio, mescla de estupor, neurótica afeição e nostalgia. O assombroso texto em inglês fez surgir um ser fantasmático, aplicado, intelectualmente veemente, que se esfalfa para entender um trauma histórico e seguir em frente – eu mesmo outrora e agora.”
8. A 18 de maio de 1977, Serra volta de vez a São Paulo, estranha as mudanças urbanas, mas se reconhece plenamente: “Havia o povo. Ele falava português. E eu nunca mais o escutara nas calçadas. Chegava a parar ou olhar para trás, surpreso, quando cruzava com dois conterrâneos anônimos conversando na nossa língua. Foi o que mais estranhei nos primeiros dias (…) Bastavam alguns minutos de conversa, porém, para reaparecer aquilo, dei-me conta, de que tinha saudade: o sorriso gentil, a intimidade instantânea, o toque, a piscadela cúmplice, o inesperado gracejo, a maledicência que é quase ternura, a sedução implícita no gesto à toa. O calor humano brasileiro aquecia quem vinha do frio”.
9. Foram treze anos que se passaram desde quando deixara a Embaixada da Bolívia, no Rio, e embarcara rumo a Paris, com escala na Espanha do Generalíssimo Franco. A memória volta aquecida: “Comecei a descer da escada do avião em Madri com certo receio. Paranóia, pensei, para acalmar-me. Mas de repente alguém tirou uma foto minha, e só minha, enquanto descia. Fui para a sala dos passageiros em trânsito com o coração na mão. Nada aconteceu e logo devolvi o coração ao devido lugar. Devia ser somente um registro a ser repassado à ditadura amiga.”
10. Em Cinquenta Anos Esta Noite, José Serra devolve o coração e a história a seu devido lugar. Há um frescor na descrição dos fatos, como se eles estivessem acontecendo agora. E o político, aquele que relata a história com os olhos que a viram, se revela desnudado, numa intimidade deliciosa de se ler.