domingo, 27 de julho de 2014

Argentina entra em contagem regressiva para o calote

- O Globo

País poderá recorrer à primeira ‘moratória técnica’ da história, por impasse judicial, se não houver acordo esta semana

 
BUENOS AIRES - Com dramatismo digno de um tango, muitos argentinos se perguntam, em meio à disputa judicial entre a Casa Rosada e os chamados “fundos abutres” nos tribunais de Nova York, se existirá vida depois do próximo dia 30 de julho. Nessa data vence o prazo para que o país possa alcançar um acordo com os credores que não participaram das operações de reestruturação da dívida de 2005 e 2010, os holdouts, e evitar um cenário inédito no mundo: um calote técnico, ou seja, não por falta de recursos ou vontade, mas sim por uma impossibilidade judicial, já que o juiz Thomas Griesa, encarregado do caso, exige que qualquer pagamento aos credores reestruturados inclua, também, os abutres.

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Analistas econômicos, investidores e operadores de mercado estão em clima de contagem regressiva e ninguém se atreve a antecipar o que acontecerá a partir da próxima quarta-feira, caso o governo da presidente Cristina Kirchner não consiga selar um entendimento com os fundos NML, do milionário Paul Singer, Aurelius Capital e outros holdouts que foram favorecidos por uma sentença questionada por todos os governos latino-americanos, autoridades de outros países como Rússia, Suíça, Itália, o Grupo dos 77 mais China, até mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI) e jornais de prestígio internacional como o “Financial Times".

— As consequências não serão iguais às do calote de 2001, e haverá vida depois do dia 30. O que não sabemos é que tipo de vida, onde estaremos e como estaremos — opinou o ex-secretário de Finanças Daniel Marx, diretor executivo da Quantum Finanças.

Segundo ele, um dos principais especialistas em dívida da Argentina, “estamos vivendo uma situação que não está controlada, por isso não sabemos quais serão os efeitos de uma eventual suspensão de pagamentos”.

— Existe uma lógica que nos levaria a pensar num acordo no último minuto, mas neste momento não imagino o governo fazendo uma proposta (de pagamento em bônus, nos moldes do acordo com o Clube de Paris) e sim a Justiça adotando alguma decisão ou os litigantes fazendo algum pedido — disse Marx, referindo-se à possibilidade de que os fundos abutres solicitem ao juiz a reposição de uma liminar que suspenda a aplicação de sua sentença e permita à Argentina negociar sem correr o risco de sofrer embargos.


Governo contava com mais tempo

Nesse cenário, que vem sendo defendido pelos advogados do país perante tribunais de Nova York, a Casa Rosada poderia continuar pagando seus vencimentos aos credores reestruturados e evitaria o calote. Mas Griesa já negou várias vezes a solicitação de novo stay (liminar) e insiste em que o governo argentino deve sentar-se à mesa para discutir uma solução com os abutres. Cristina e o ministro da Economia, Axel Kicillof, resistem, principalmente, porque o principal temor da equipe econômica é que seja ativada a cláusula Rights Upon Future Offers (Rufo). Ela estabelece que caso uma oferta aos holdouts seja feita — o que obrigatoriamente implicaria melhorar as condições das trocas de 2005 e 2010 —, deverá reconhecer os mesmos direitos aos credores reestruturados.

Segundo cálculos de economistas do setor privado, isso poderia implicar até US$ 20 bilhões em novas demandas, mais da metade das reservas do Banco Central argentino.

Assim, Kicillof evita qualquer ação que possa ativar a Rufo, até mesmo um encontro tête-à-tête com os abutres. A famosa cláusula que atormenta Cristina e seu ministro vence no próximo dia 31 de dezembro, razão pela qual o governo argentino vem empurrando o conflito com os holdouts nos últimos anos. Com declarações como “nem um centavo aos abutres”, a presidente afastou qualquer chance de acordo, sempre imaginando que eventual negociação ficaria para 2015, seu último ano de mandato. O problema surgiu quando, em junho, a Suprema Corte americana se negou a tratar do caso argentino. O governo Kirchner contava com mais tempo, achando que a Corte aceitaria o caso e o derivaria ao procurador geral, o que teria significado, ao menos, mais seis meses de oxigênio.

— Há duas opções: um novo stay ou default (calote). Muitos advogados americanos analisam o alcance da Rufo. Não é uma invenção do governo argentino, é uma realidade — disse Walter Molano, da BCP Securities, em Nova York.


Demanda por bônus deve crescer

Para ele, o mercado entenderá, no pior dos casos, “que se trata de um calote técnico”.
— O que deverá acontecer é uma maior demanda por papéis argentinos, esperando uma valorização em 2015, quando deverá ser fechado um acordo — explicou Molano.

Numa das últimas apresentações feitas pelos advogados da Cleary Gottlieb Steen & Hamilton, que defendem a Argentina, a Griesa, o país afirmou que “se for ativada, a cláusula Rufo poderia levar a novas demandas de outros credores por bilhões de dólares, colocando em risco as operações de 2005 e 2010”. Os advogados da Argentina indicaram que se Griesa continuar ignorando o obstáculo legal “tornará a situação mais difícil de ser resolvida”.

A estratégia de Cristina parece clara: o governo argentino responsabilizará Griesa e a Justiça americana por um eventual calote, o quarto da história do país. Já a ativação da Rufo, que poderia implicar até mesmo demandas penais contra funcionários, seria culpa da Casa Rosada.

— O temor à responsabilidade legal por um eventual colapso das trocas de 2005 e 2010, improvável, mas não impossível, representa hoje o principal obstáculo na negociação — enfatizou o economista Eduardo Levy Yeyati, da Elypsis.

Na cruzada contra os fundos abutres, o governo Kirchner obteve apoios importantes.

— A comunidade internacional é contra a sentença de Griesa porque boicota futuras reestruturações. Apoiaram o país prêmios Nobel como Stiglitz, e governos como França, México e Brasil — disse a jornalista Mara Laudonia, autora de “Os abutres da dívida”.

No país, alguns economistas como Martin Tetaz, pesquisador da Universidade de La Plata, acreditam num acordo de última hora. Caso contrário, o país terá, nos próximos meses, mais instabilidade cambial (leia-se alta do dólar), inflação e recessão.