CAROL NOGUEIRA - Folha de São Paulo
DE NOVA YORK
DE NOVA YORK
Ela, ao contrário do que poderia ser, não é nada intimidante. É minúscula (na última medição oficial tinha 1,57m, sendo que até anos atrás dizia ter 1,63m), aparenta ter 30 anos a menos e possui, hoje em dia, o que se costuma chamar de "energia boa", o oposto da amargura que transparecia seis anos atrás, quando fez questão de delimitar os tópicos da entrevista - desta vez, apenas pediu que algumas perguntas fossem enviadas previamente por e-mail, para que ela pudesse se preparar melhor e pensar sobre os assuntos.
A artista plástica, cantora e performer Yoko Ono, que ainda mora no apartamento que dividiu com John Lennon
O guarda-roupa também mudou. Se Yoko antes usava somente roupas brancas, hoje em dia foi ao extremo oposto, com indumentária inteira negra ("é mais fácil combinar"). Ela me fita através dos seus (esses sim, os mesmos) indefectíveis óculos de grau arroxeados e me oferece algo para beber. Recuso. Ela vai de chá.
Elogio a casa e ela pergunta: "Ah, você gostou? Sabe, eu moro aqui há muito, muito tempo". Yoko diz que após o assassinato do marido, que aconteceu na frente do prédio, quando eles chegavam em casa, em 8 de dezembro de 1980, nunca pensou em se mudar dali, apesar do trauma. "É o meu lar. Vamos falar na cozinha?", oferece, repetindo o mesmo convite feito à Folha em entrevista de 2007, e como deve acontecer com outros jornalistas que a visitam no Dakota.
Estamos no apartamento 72, residência Ono-Lennon desde o começo da década de 70. Do outro lado do hall, está o apartamento 71, usado como escritório. Do lado de fora, nada entrega que aquele já foi o apartamento do casal.
Na porta dos dois imóveis havia até duas ordinárias guirlandas natalinas. Dentro, porém, a história é outra. Na sala de estar, cheirando a incenso, um quadro de Lennon feito por Andy Warhol repousa em cima da lareira. Os vários modelos de chapéus e óculos do Beatle adornam uma mesinha de canto.
Alguns móveis, como a mesa de jantar em que nos sentamos para a entrevista, ainda são os mesmos de mais de 30 anos atrás.
Parte da ansiedade de Yoko é que, no fundo, ela não está exatamente acostumada a ouvir coisas boas sobre ela. Há anos, se habituou a ser vista sob criticismo.
Para o mundo todo, ela é a vilã da história, aquela que estava sempre cochichando no ouvido de Lennon. Aquela que brigou com Paul McCartney e, em troca, não foi convidada para o funeral da mulher dele, Linda, em 1998.
Mas nada disso parece incomodá-la mais. Ultimamente, ela está mais leve. Talvez, em parte, porque desde 2012 ela não conviva mais com o estigma de ter "acabado com os Beatles", desde que Paul McCartney disse em entrevista à BBC que ela não era culpada pelo fim do grupo mais famoso da história.
"John ia sair da banda de qualquer maneira", argumentou Macca, que em outubro do ano passado afirmou à revista americana "Rolling Stone" ter feito as pazes com Yoko.
Segundo ela, o momento nunca aconteceu, mas a artista se diz muito grata pelas palavras do músico mesmo assim.
"Eu achei ótimo Paul ter desfeito esse mal-entendido. Demorou 40 anos, mas tudo bem. Sabe, nós nunca tivemos uma briga de verdade, mas as pessoas gostam de nos imaginar num ringue, brigando o tempo todo", diz.
Hannibal Hanschke/Efe |
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Yoko Ono, viúva de John Lennon |
Outro relacionamento que vai bem nos últimos anos é com o filho Sean, seu único herdeiro com Lennon. Ela também tem uma filha, Kyoko, 50, fruto de seu segundo casamento (Lennon foi o terceiro), com o músico Anthony Cox, que escondeu a menina da mãe por 23 anos, desde quando ela tinha oito, após se juntar a um grupo cristão. Hoje em dia, elas se falam, mas não são próximas. Vovó Ono tampouco convive muito com os netos adolescentes, Emi e Jack.
Foi Sean quem produziu o disco mais recente da mãe, "Take Me To the Land of Hell", lançado em novembro no Brasil. "Começamos a trabalhar juntos quando Sean tinha 17 anos, mas naquela época foi terrível, porque todos os amigos dele se uniram contra mim. Agora ele está mais maduro e ficou fácil trabalhar", ela diz. É o filho quem decide com quem ela irá colaborar.
"Às vezes, sugiro um nome antigo e ele fala: 'Não, mamãe. Você deveria fazer algo com essa pessoa aqui'. E eu falo: 'Tudo bem'", diz, imitando a voz do homem de 38 anos com alguma infantilidade.
Foi também por causa de Sean, ela conta, que decidiu retomar a Plastic Ono Band, em 2009. "Um dia, Sean me ligou e disse: 'Mamãe, você se importaria em reviver o grupo?'. E eu disse: 'Por que? É loucura'. Mas ele falou: 'Ah, por favor, por favor'. Pra mim isso é passado, mas pra ele é importante. É sobre o papai e a mamãe", explica.
'EI, ESTOU AQUI'
Entre pequenos goles de chá, ela conta que está sem dormir há 20 horas por causa do "jetlag" -acabara de voltar de uma longa viagem, na qual passou por Reykjavík, na Islândia, Sydney, na Austrália, e Tóquio, no Japão.
A primeira parada é anual, no aniversário da morte de John, quando visita a Imagine Peace Tower, memorial inaugurado em homenagem ao músico em 2007. "Fico muito feliz em fazer isso, porque a Islândia é um lugar para onde as pessoas não iam muito antes disso, e agora todo mundo quer ir", diz.
Também na noite do aniversário da morte do marido, Yoko (ou melhor, seus assistentes) coloca, há anos, uma única vela no peitoral da janela que dá para a frente do prédio ‑onde 33 anos atrás jazia o corpo de Lennon. "Pessoas do mundo todo vem até o Strawberry Fields Memorial [no Central Park] nesse dia, e eles ficam olhando para o apartamento, esperando um sinal. Então eu faço isso, que é uma espécie de: 'Ei, estou aqui'."
A vitalidade da octogenária impressiona: "Eu adoro dançar, às vezes coloco música aqui no apartamento e danço. Meu corpo me manda dançar quando há música", diverte-se Yoko. Mas algumas pessoas diriam que "dance music" é para pessoas jovens, provoco. E ela responde confiante: "Eu não sei se é algo para pessoas jovens. Eu estava dançando antes mesmo de elas nascerem!".
E parar de trabalhar, como também fazia antes dos jovens nascerem, tampouco passa por sua cabeça. "Aposentadoria? Jamais! Estou vivendo a minha segunda vida agora. Já tenho mais de dez shows programados para este ano", diz.
Isso sem contar projetos fora da música, como o livro que ela acaba de lançar, o ainda inédito no Brasil "Acorn" (a noz do carvalho que os esquilos comem), e exposições da sua arte. Sim, porque não se pode esquecer que Yoko é artista - parafraseando Lennon, a "artista desconhecida mais famosa do mundo", afirmação que ainda vale até hoje, segundo ela.
Como artista, Yoko ficou conhecida por suas performances conceituais.
Uma das mais famosas é "Cut Piece", apresentada pela primeira vez em 1964, em Tóquio, na qual alguém da plateia era convidado a cortar suas roupas até que ela ficasse nua. A performance foi refeita pela cantora Peaches no ano passado, em Londres, a convite da própria artista ("não vejo ninguém melhor para essa obra hoje do que ela").
'MAIRE SAIRO'
Nem Lady Gaga, a quem ela tanto elogiou nos últimos anos e que colaborou recentemente com a artista de performance sérvia Marina Abramovic em um projeto de arte? "Não. Lady Gaga não precisa de ninguém. Ela é talentosa e eu a respeito - deve ser difícil vestir todas aquelas roupas -, mas ela está indo muito bem sozinha", diz, provocativa.
Pergunto, então, o que ela acha da hiperssexualização de Miley Cyrus, mas Yoko não sabe quem ela é ("Maire Sairo?"). É preciso admitir: a artista, às vezes, é meio "vovó". Mas é claro que ela tem uma posição firme sobre o assunto, afinal, sempre foi conhecida por ser feminista e liberal. Estamos falando de uma mulher que liberou o marido por quase dois anos para sair de casa e ter um caso com sua assistente - ela mesma sugeriu o relacionamento aos dois. "Nossa geração criou isso, essa liberdade para as mulheres, e temos de continuar lutando, porque somos livres. Ainda há muitas mulheres sofrendo, especialmente em países muçulmanos, e é preciso lutar contra isso."
Yoko ora parece sábia, como quando elogia minha camisa, que digo ter custado pouco e ela me diz, em tom professoral, que "o valor das coisas pouco importa". Isso vindo de alguém que cresceu em uma família muito rica ‑seu pai era banqueiro com fortuna estimada em 500 milhões de dólares. Mas ela também já passou por maus bocados. Em dezembro, enquanto dava entrevistas para apoiar uma campanha contra a fome, afirmou que sua família passou por dificuldades e não tinha o que comer durante a Segunda Guerra Mundial no Japão.
Ora parece ingênua ("oh, eu detesto essas coisas", diz, falando sobre armas). Às vezes é enigmática ("tudo o que tenho a dizer sobre o governo de Obama é 'Ahhhhh', diz em tom de decepção). Suas respostas começam sempre com um "hummm" e geralmente terminam com um "né?". Às vezes, é monossilábica, outras, conta coisas superpessoais, como o que pensou de John Lennon quando o conheceu ("um abusado!"). Mas parece escolher o que quer responder e, às vezes, não responde. Em troca, dá risada ou responde algo que não foi perguntado. Ou talvez isso seja tudo impressão. Talvez pela mitologia construída em volta dela. Talvez, porque seja só uma pessoa comum; uma senhora de 80 anos.
E, por falar em idade, para encerrar a entrevista pergunto sobre a recente faixa "7th Floor", na qual canta: "Eu estava no sétimo andar, quando vi um corpo caído na calçada. Será que sou eu?". Seria uma referência à morte do marido e, portanto, uma metáfora para a aproximação da própria morte? "De certa forma, sim. Mas, ao mesmo tempo, é como uma poesia, tem um sentido abstrato. Nós morremos um pouco todos os dias. Nós mudamos. Não é uma morte grande, são várias pequenas mortes", Yoko diz enquanto se levanta e arruma os óculos, antes de finalizar: "Mas, olha, eu não tenho medo da morte, não. Estou muito ocupada para pensar nela".