sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

"Os tecnocratas da pandemia", por Sílvio Navarro

De quem são as decisões que pesam no bolso dos cidadãos com (muitas) contas a pagar





Ciência, ciência, ciência. #FiqueEmCasa. Não é necessária a aferição de nenhum instituto de pesquisa para concluir aquilo que as calçadas, os grupos de WhatsApp e as redes sociais já responderam sobre o enfrentamento da pandemia no Brasil (e aqui não se trata, frise-se de largada, de ser ou não favorável a vacinas): a maioria dos cidadãos não aguenta mais ouvir variações desse mantra porque compreendeu que economia também é saúde — e o cidadão precisa trabalhar.

O fato é que, por trás das trocas de farpas públicas entre governantes sobre a condução de políticas durante o caos, há uma engrenagem comandada por especialistas de diversas áreas que atestam decisões como as do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ou do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), de impor medidas restritivas ao funcionamento de estabelecimentos comerciais e à circulação em áreas públicas em pleno 2021. 

Em alguns casos, tal cenário não chega a ser muito diferente do “toque de recolher” que tem provocado protestos e degenerado em prisão de pessoas que estavam nas ruas em países na Europa, como ocorreu nesta semana na Holanda, por exemplo.

Na última quarta-feira, 27, representantes e funcionários de bares e restaurantes da cidade de São Paulo foram às ruas num ato contra o novo trancamento instituído pelo governo estadual. Com o Plano São Paulo de volta à cor mais aguda, somente o funcionamento de determinados serviços considerados essenciais, como supermercados, postos de combustíveis e farmácias, segue normalizado. 

Já os bares e restaurantes têm de baixar as portas às 20 horas, não podem reabri-las nos fins de semana (quando o faturamento muitas vezes salva o caixa do mês) e devem sobreviver do delivery de produtos. 

Representantes da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) já perderam a conta de quantos empregos foram sacrificados e das toneladas de alimentos que terminaram descartados. 

Para além do ramo, a régua é mais simples para o leitor: o IPVA já chegou, o IPTU também, o preço da carne e dos combustíveis subiu, mas, segundo a lógica dos sensatos de plantão, é melhor ficar em casa até o temporal passar — ou seja: mesmo que você morra de fome se seu cartão estiver estourado, lembre-se: é melhor morrer de covid-19.

E quem é o responsável por decisões como essa num território de 44 milhões de habitantes? 

A resposta: o Centro de Contingência da covid-19, assim como foi batizado por João Doria o comitê de especialistas que toma as decisões sobre a abertura do comércio, o ir e vir de pessoas em plataformas de transporte, a desativação dos hospitais de campanha e também a retomada das aulas presenciais nas escolas públicas — esta, talvez, uma das mais tardias do mundo.

Paleta de cores

Esse grupo já foi chefiado em rodízio pelos médicos David Uip, Helena Sato, José Medina e Paulo Menezes. O diretor-executivo é João Gabbardo dos Reis, ex-número 2 do então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. 

Todos detêm reputação notável, mas parecem estar trancafiados numa bolha, obcecados na busca dos imunizantes — contudo, até lá, permanecem fixados em paletas de cores que pintam o coração do país em áreas de risco.

Uma das principais críticas de prefeitos, entidades de classe e até de integrantes do Ministério Público e do Judiciário às medidas adotadas pelo comitê de notáveis paulista é o mapa que muda de tonalidade conforme a disponibilidade de leitos em hospitais e o volume de casos registrados nas regiões — uma espécie de caixa de lápis coloridos usados nas escolas até agora fechadas: amarelo, laranja, vermelho e por aí vai.

“Quando sai um decreto do governo, eu preciso seguir, mesmo que seja contra aquilo em que acredito e as orientações de meus próprios técnicos. Meu maior problema durante a pandemia foi a abordagem tecnocrata de enfrentamento à doença”, afirmou o prefeito de São José dos Campos, no Vale do Paraíba, Felicio Ramuth, do mesmo partido do governador.

“Estamos há dez meses vivendo essa pandemia, está na hora de entender esses dados. Mas as atitudes são as mesmas, tentativas e erros que estavam sendo feitos nos primeiros dois, três meses. Tenho grande respeito pelos técnicos do Centro de Contingência, eles são muito bem formados, mas conhecem a realidade dos grandes centros e têm pouco contato com as pequenas cidades”, completou Ramuth em entrevista à rádio Jovem Pan.

Em Bauru, o mais populoso município do centro-oeste paulista (400 mil habitantes), o Ministério Público decidiu contestar o trancamento imposto pelo governo em apoio à prefeita Suéllen Rosim (Patriota), avessa às portas cerradas. Sim, a promotoria apoiou a prefeitura.

“Esse índice utilizado pelo Plano São Paulo é completamente enganoso, e não é justificável para classificar o DRS-6 [Departamento Regional de Saúde – 6ª Região] como faixa vermelha, principalmente porque isso decorreria da própria negligência do Estado, que não fez seu dever de casa nos dez meses da pandemia e, agora, por conta de sua própria falha quer rebaixar e trazer mais restrições e sofrimentos para as pessoas impondo regras arbitrárias e desconectadas com a realidade local”, afirmou o promotor Enilson Komono.

Exemplos de clara ineficácia

João Gabbardo rebateu dizendo que o membro do Ministério Público é um irresponsável, e o governo estadual afirmou que, “dentro do ordenamento jurídico estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, os municípios podem ter regras de maior endurecimento no combate ao coronavírus, e nunca mais flexíveis”.

Medidas pouco eficazes repetidas à exaustão como os lockdowns não são primazia do maior Estado do Brasil. Assistentes bancados com o dinheiro de quem paga seus impostos em dia insistem em não dar o braço a torcer, mesmo diante de exemplos de clara ineficácia observada na grama do vizinho, e continuam a inventar normas inexplicáveis — como o vírus que só chega aos bares nos finais de semana ou só assalta o contribuinte depois do cair da noite. 

Não é exagero notar que suas canetas, em alguns lugares, às vezes parecem ter mais tinta do que as dos líderes eleitos.

O Parlamento Europeu registra o fenômeno. Em Washington, não é diferente. Os tecnocratas da Casa Branca levaram ao presidente norte-americano Joe Biden nada menos que 19 “ordens executivas” — o equivalente a decretos presidenciais. 

Nunca se viu isso antes nos Estados Unidos: Donald Trump assinou apenas uma ordem nos seus três primeiros dias de governo; Barack Obama, 5; George W. Bush, nenhuma; e Bill Clinton, uma. Os números evidenciam o aumento da interferência do Estado na vida dos cidadãos — e essa interferência se dá pela ação dos tecnocratas.

Resta a impressão de que alguns deles, depois de convocados para a guerra contra o inimigo invisível, seja no Brasil ou no mundo, se perderam nos próprios labirintos.

Revista Oeste