segunda-feira, 27 de maio de 2019

Brasil tem potencial, mas não podemos depender só de renda, diz presidente da Ambev

Às vésperas de completar 20 anos da fusão entre Brahma e Antarctica, que formou a Ambev, a maior fabricante de cervejas do paísestá diante de um cenário com queda no volume de vendas para o setor, consumidores interessados em novas marcas e economia inóspita. 
Segundo Bernardo Paiva, presidente da Ambev, em países de mercado mais maduro, como EUA e Canadá, a batalha da indústria é a mudança nos hábitos de consumo. Já no Brasil, a crise é o desafio.
 
“Lá, talvez as pessoas estejam tomando outro líquido. Aqui no Brasil, a indústria ficou estável nos últimos anos por falta de renda. Passamos pela maior crise econômica da história. Se afeta a renda, afeta bens de consumo de massa como um todo”, diz. 
O presidente da Ambev, Bernardo Paiva, em escritório do grupo em São Paulo. - Bruno Santos - 9.mai.19/Folhapress
A Ambev registrou queda no volume de cerveja comercializada no Brasil em 2018, mas reage neste ano. A meta é desenvolver as marcas premium, aproveitando a onda das cervejas artesanais, que estão abrindo ocasiões de consumo, como aperitivo, e em restaurantes, além do consumo tradicional da cerveja na praia.
Nessas duas décadas, a Ambev adquiriu novas marcas, mas, diz Paiva, não mexeu em pilares como o recrutamento de “gente boa”, que quer chegar ao “sonho grande” —lema dos fundadores Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira.
O trio de investidores, dono da gestora 3G Capital, que tem a gigante de alimentos Kraft Heinz em parceria com o bilionário Warren Buffett, enfrenta um dilema nos EUA, com queda de vendas e investigação do órgão regulador.
Paiva afasta a chance de contágio. Apesar da ligação cultural com os fundadores, não há associação, diz. “Não temos nada a ver com a 3G.” 
Nos mercados mais maduros, como EUA, há queda contínua de volume. Como vai o Brasil? Como líderes da categoria, o que estão fazendo para defendê-la?
Cada país vive um estágio na evolução da indústria. Nos mais maduros, como EUA e Canadá, talvez a indústria não cresça muito por outras razões, mais ligadas a hábitos de consumo que mudam. Talvez as pessoas estejam tomando outro líquido. 
Aqui no Brasil a indústria ficou estável nos últimos anos, mas não por uma questão de mudança de hábito. Foi por falta de renda. Passamos pela maior crise econômica da história. Se afeta a renda, afeta bens de consumo de massa como um todo.
O potencial de crescimento no Brasil é enorme. Hoje, o que impede de ser ainda maior é a renda. E ela vai voltar. O país sempre teve crises, mas sempre tem depois um ciclo de crescimento. Não sei se volta em um mês, dois ou três, mas algum momento volta.
Porém, não podemos só depender da volta da renda. Então estamos fazendo muito para ser uma indústria que não cresça só em volume, mas que tenha um portfólio de marcas que enderece o que o consumidor quer.
Qual é a estratégia? 
Ter portfólio e prioridades claras. Tem que ter vários tipos de cerveja —a clássica, a que desce mais fácil, outra mais premium ou para pessoas que têm pouca renda. Há técnicas para aplicar isso nos países, de acordo com a maturidade. A gente define o portfólio com base em como estão os países. 
Mesmo dentro dos estados ou cidades. Em São Paulo, se eu chegar no bairro do Capão Redondo e oferecer um portfólio que eu ofereço no Itaim, não funciona. Esse entendimento evoluiu. 
Como?
Tenho que ter um portfólio de marcas e embalagens para endereçar a consumidores com diferentes líquidos para diferentes ocasiões. Evoluímos o portfólio e estamos ganhando participação no segmento premium. Mudamos garrafas, trouxemos outras marcas. Tem inovação.
Vamos lançar uma marca como a Beck's agora no Brasil. Ela não vai vender muito no início. E não quero que venda muito no início. Quero construir a marca, nos lugares certos, construir a imagem com paciência. Como eu tenho as outras todas, não preciso dela agora. Posso ter tempo para que o consumidor comece a entender a proposição da marca.
Estamos em um momento de ciclo virtuoso porque temos o portfólio construído lá atrás, começando a colher os benefícios, e temos as inovações. Num mercado como o brasileiro, que tem duas marcas premium que têm mais ou menos o mesmo volume, Budweiser [marca da Ambev] e Heineken [sua concorrente], elas vão perder participação. O consumidor vai querer mais opções. 
Qual é o futuro da categoria em geral? Estamos expandindo para ocasiões em que não se consumia cerveja, ou tirando volume de vinho, por exemplo. Cervejas crafts, como a Colorado, são degustadas em ocasiões como aperitivo. Lá atrás, só havia cervejas lagers, tipo Brahma e Skol, muito boas para praia etc., mas talvez não para um restaurante.
E a concorrência das artesanais?
A cerveja artesanal me abre portas para essas outras ocasiões. Abre momentos de consumo em que, lá atrás, as pessoas não imaginavam Brahma e Skol. Se alguém está me abrindo a porta para ensinar o consumidor que esse tipo de cerveja é bom nessa outra ocasião, é bom para mim também. E eu sou grande para fazer isso em escala.
Vocês podem eventualmente comprar essas novas marcas? Pode ser que sim ou que não. Tem algumas que podemos chegar e comprar. Mas o mais importante é a educação.
Essas marcas começam a incluir a cerveja em ocasiões de consumo em que a gente não estava. Temos uma operação da cervejaria Bohemia, em Petrópolis, que a gente abre para cervejeiros artesanais fazerem seus líquidos na nossa unidade. É maluquice? Não. Ele está vindo aqui para fazer cerveja, não vinho.
Como é a participação das artesanais aqui e nos EUA? É muito maior lá, em torno de 10%. Aqui no Brasil é menos de 1%. 
Refrigerantes também estão sofrendo a perda de volume. Como estão lidando? É diferente. Tem o refrigerante com açúcar, que realmente sofre. 
Não é só a crise. O foco é manter algumas marcas e crescer o Guaraná Antarctica, mas estamos focando o segmento premium de refrigerantes, com Gatorade, H2O!, Tônica, Sucos Do Bem, endereçando a tendência de saúde. As pessoas têm o preconceito pelo refrigerante com açúcar. O nosso volume de refrigerantes sem açúcar cresce muito.
Como a Ambev manteve o DNA nestes 20 anos?
Não mudou a nossa cultura de deixar legado ligado ao sonho, não só de criação de valor interno, mas de impacto no mundo. A cultura de buscar gente boa que goste deste sonho não mudou, e de reunir gente com características diferentes. Outro ponto é fazer as coisas certas, não tomar atalho.
No que se refere a pessoas, elas têm que ter espaço para poder crescer. Tem que ter oportunidade para todos, não importa de onde veio.
Falamos em meritocracia há muitos anos. Para viver melhor esse princípio, temos que entender que o mundo mudou. Tem que ser um ambiente aberto e inclusivo. As pessoas trabalham juntas, cada um é de um jeito. Quem quiser vem trabalhar de shorts, não temos regra para isso. Achar gente boa e que compartilhe do sonho não é fácil.
Vocês estão com algum programa de diversidade novo como outras empresas estão fazendo?
Temos um programa há mais de 20 anos. Estamos vivendo a meritocracia de forma mais antenada. Não temos um programa de diversidade X, Y, Z para criar moda. Temos um programa de respeito. As pessoas aqui dentro têm que encontrar um ambiente inclusivo para que elas consigam ter espaço para exercerem o potencial máximo. Isso é meritocracia. 
Em abril, o STF decidiu pelo direito ao crédito do IPI na entrada de insumos isentos oriundos da Zona Franca de Manaus, elevando a perda de arrecadação para o Tesouro. Como vocês avaliaram?
Não é para Ambev. É para todas as indústrias que estão lá. Entramos lá na década de 90. Achamos bom porque foi um incentivo aprovado, que atraiu investimentos lá atrás para aquela região, e o STF manteve. Mantém uma segurança jurídica no país, de que um investimento é feito e não se muda a lei de um dia para o outro. Se quiser mudar a lei, tem que falar com o Congresso.
O 3G vive uma crise com a Kraft. Aqui na Ambev, como estão vendo isso, de longe, mas com a relação que possuem com os fundadores? 
Nós respeitamos a 3G e as pessoas que estão lá, mas é difícil até dar opinião porque não temos nada a ver com a 3G. Na estrutura de sócios da Ambev, temos um sócio com o controle, que é a AB Inbev. Os acionistas da 3G são acionistas da AB Inbev, junto com acionistas belgas, e os que compram ações em Bolsa.
Não temos ligação sequer formal com a 3G. Não temos reunião com a 3G. A 3G não é sócia da Ambev nem nunca foi. A essência da cultura, dos valores do sonho, é comum porque realmente nasceu dos fundadores. Mas na forma como aplicamos, a Ambev tem sua história.
Respeito a 3G, são pessoas excepcionais, desejo o melhor, mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. 
Qual é a sua avaliação do governo e do país? 
Somos pró Brasil há mais de cem anos. Pelo tamanho e o impacto que a companhia tem, e o amor que tem por este país, pelas pessoas que estão aqui trabalhando, e pelas marcas, temos que estar sempre ao lado do país. Vamos continuar apostando no Brasil, no crescimento.

Joana Cunha, Folha de São Paulo