A menos de três meses do fim do ano, mais de 500 ações do governo federal previstas no Orçamento não receberam nenhum centavo. Cerca de 20% dessas ações estão sem dinheiro desde que o presidente Michel Temer assumiu o posto, em 2016.
Ao todo, 1.585 programas federais estão previstos no Orçamento deste ano.
Com a falta de recursos, ficam comprometidos projetos de construção de hospitais, penitenciárias, sistemas de alerta de desastres naturais, compra de medicamentos de portadores de doenças raras e preservação do patrimônio histórico e natural.
Em 2018, R$ 9 bilhões para essas ações ainda não foram efetivamente pagos.
Na semana passada, o Museu Nacional pegou fogo e seu acervo foi destruído, em um episódio que indica negligência com a manutenção e a segurança do edifício público.
Os repasses à instituição, vinculada à UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), caíram à metade em cinco anos. O governo atribuiu a responsabilidade pela falta de verba à universidade, que gasta quase todos os seus recursos (87%) com folha salarial. Com isso, sobra pouco para repassar ao museu.
O problema, no entanto, se repete no governo federal --91% do Orçamento está comprometido com despesas obrigatórias.
O próximo presidente enfrentará um cenário ainda mais complicado, com as despesas obrigatórias consumindo 93% do Orçamento em 2019, o mais elevado patamar desde 2006.
O bilionário déficit nas contas públicas, que se arrasta desde 2014, impôs o atual ajuste fiscal.
Sem capacidade de agir sobre despesas obrigatórias, o governo tem restringido justamente as chamadas despesas discricionárias, como as previstas na manutenção de museus, construção de novas unidades hospitalares e centros de inovação e tecnologia.
A Folha analisou a lista de despesas discricionárias da União dos últimos quatro anos, considerando também emendas parlamentares individuais. Até a semana passada, 508 ações não haviam recebido nenhum pagamento em 2018.
Promessa de Temer quando lançou o Plano Nacional de Segurança, no início de 2017, a construção de penitenciárias em Itajaí (SC), Iranduba (AM), Charqueadas (RS), Montes Claros (MG) e Santa Leopoldina (ES) foi lançada com a expectativa de R$ 200 milhões em gastos no ano passado.
O projeto não deslanchou, teve sua dotação reduzida à metade neste ano e, até o momento, nada foi pago.
No Ministério da Saúde, a Fiocruz, centro de excelência na produção de medicamentos, aguarda recursos para dois institutos de saúde voltados a mulheres e crianças.
Falta dinheiro também para a nova unidade administrativa no Rio de Janeiro, uma unidade de pesquisa em Belo Horizonte e um centro de desenvolvimento tecnológico de insumos para o SUS.
De 2015 a 2017, esses projetos receberam R$ 50 milhões. Neste ano, a previsão era que recebessem R$ 25 milhões, mas o desembolso está zerado.
O programa que dá apoio à compra de medicamentos para doenças raras, incluído no Orçamento deste ano, tampouco recebeu recursos.
O ministério afirma que trocou essa previsão orçamentária por outra, mas a ação de destino citada nem sequer aparece na previsão do Orçamento de 2018.
Segundo associações de defesa dos interesses dos portadores de doenças raras, pelo menos 13 pessoas morreram enquanto aguardavam decisão judicial para receber remédio.
A escassez também afeta centros de ensino, pesquisa e o acervo histórico e natural.
O Brasil, com seus 22 sítios tombados pela Unesco como patrimônio da humanidade, não destina os recursos devidos para garantir sua preservação, como prevê o acordo com o órgão da ONU (Organização das Nações Unidas).
Um deles é o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. Quase 60 vigias foram demitidos neste ano.
O parque é administrado pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), criada pela arqueóloga Niède Guidon. Nele, existem inscrições rupestres que comprovam a presença do homem na América há mais de 50 mil anos.
"Até pouco tempo, a fundação ajudava na manutenção do parque. Recebíamos recursos via Lei Rouanet e só a Petrobras doava R$ 2 milhões por ano. Esse dinheiro não vem mais", disse Yedda Castro Reis, advogada da fundação.
A restrição orçamentária conteve planos da Ufla (Universidade Federal de Lavras).
Após investir R$ 222 mil no projeto de um hospital de alta complexidade, em 2016, a reitoria decidiu congelar a ideia e concentrar esforços em uma alternativa bem mais barata: um hospital de 80 leitos com pronto-socorro e atendimento ambulatorial.
A proposta inicial custaria R$ 135 milhões, oito vezes mais. A troca, segundo Josiana Barçante, chefe de gabinete da reitoria, foi uma saída "pé no chão". "No cenário político e econômico atual, apostamos em começar pequeno."
O impacto também é internacional. Mais de uma dezena de órgãos dos quais o Brasil é membro estão sem receber.
Agências da ONU, como a FAO (alimentação e agricultura) e a Unido (Desenvolvimento Industrial), também não receberam pagamentos do Brasil neste ano.
RESPONSABILIDADES
Nenhum ministério assumiu a responsabilidade pela falta de pagamentos a programas do governo federal previstos no Orçamento.
O Ministério do Planejamento informou que os limites de pagamento são dados pela Fazenda.
O Tesouro Nacional, que é vinculado à Fazenda, afirmou que seu papel é apenas definir o "montante global" de despesas a serem pagas em cada pasta, tendo como base os valores reservados pelo Planejamento.
"O dinheiro é transferido ao ministério setorial, ao qual cabe definir a execução do gasto e priorizar os recursos dentro de cada área", disse o Tesouro por meio de sua assessoria.
O Ministério de Educação afirmou que as ações são executadas pela administração indireta, que é autônoma. Por isso, a pasta informou que "não tem ingerência nos processos de liquidação e pagamento das unidades vinculadas".
O investimento no hospital da Ufla ainda não foi executado, segundo o MEC.
O Ministério da Segurança Pública informou que as obras das penitenciárias dependem de terrenos cedidos pelos municípios. Por isso, as tratativas para os presídios não evoluíram.
No caso de Charqueadas (RS), a seleção do terreno foi concluída em janeiro. "Após a finalização do estudo [geológico], serão elaborados os projetos executivos e complementares, bem como planilhas orçamentárias", informou.
O Ministério da Saúde disse que a execução orçamentária pode ocorrer até o fim do ano.
Segundo a pasta, o não pagamento das ações citadas representam 0,06% das despesas previstas --R$ 73,8 milhões de um total de R$ 131,4 bilhões para este ano.
No caso da Fiocruz, "o orçamento destinado a instituição é crescente".
O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações disse que não houve contingenciamento neste ano.
O orçamento do Insa (Instituto Nacional do Semiárido) foi reforçado em abril, diz a pasta, que não esclareceu o volume de desembolsos, até o momento, abaixo do que foi reservado para o órgão.
Sobre a barragem Germinal (CE), o Ministério da Integração afirmou que a execução da obra é de responsabilidade do governo do Estado. A pasta diz que inauguração ocorreu em agosto de 2017. Mas o Orçamento prevê o desembolso de R$ 8,6 milhões neste ano.
Responsável pela política de relações exteriores brasileira, o Itamaraty afirmou que os atrasos têm impacto na atuação do país nos fóruns.
"No âmbito da Comissão Interministerial de Participação em Organismos Internacionais, criada em fevereiro de 2016, tem-se discutido, mesmo com as limitações impostas pelas restrições orçamentárias vigentes, meios de encontrar soluções sustentáveis para o problema", afirmou o Itamaraty.
PROGRAMAS SEM REPASSES EM 2018
Hospitais universitários
Obras na Universidade Federal do Tocantins e na Universidade Federal de Lavras
Estudos do semiárido
Construção do Insa (Instituto Nacional do Semiárido)
Penitenciárias
Construção de presídios federais em Itajaí (SC), Iranduba (AM), Charqueadas (RS), Montes Claros (MG) e Santa Leopoldina (ES)
Fiocruz
A instituição não recebeu a verba para a construção de nova unidade administrativa
Depósito de lixo atômico
Implementação do repositório de rejeitos de baixo e médio níveis
Centro de monitoramento de desastres naturais
O núcleo funciona 24 horas por dia monitorando as áreas de risco de 957 municípios classificados como vulneráveis
Barragens
Duas obras no Nordeste ficaram sem verba: a da Germinal, no Ceará, e a de Oiticica, no Rio Grande do Norte