sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

"Bob Dylan e a ‘revolução cultural’", por Kenneth Maxwell

O Globo

Ele já não é mais uma das vozes da insatisfação dos jovens, mas o poeta do sentimento nostálgico de um mundo perdido, de tristes esquinas e cidades em ruínas


Estive em Londres semana passada e visitei duas exposições de arte. A primeira, em uma galeria de Mayfair, apresentava as pinturas mais recentes de Bob Dylan. A segunda, no Victoria & Albert Museum, era sobre a “revolução cultural” dos anos 60. As duas visitas foram nostálgicas e inquietantes, e fizeram ressurgir em mim memórias muito profundas. Bob Dylan e eu temos pelo menos uma coisa em comum: ambos nascemos em 1941. Ele, na pequena Duluth, Minnesota, e eu numa pequena cidade de Somerset, Inglaterra. Dylan chegou a Nova York em 1960, e eu, em 1964.

Fiquei maravilhado pelas pinturas de Dylan. Um arrebatador uso de cores é combinado com a afiada percepção da paisagem americana: letreiros, placas de estrada, nomes de bares locais, lojas de esquinas, evocando sempre um tempo perdido. Paisagens desertas, tristes, observadas pelo olhar melancólico do poeta. Poucas pessoas são retratadas na série de pinturas “The Beaten Path” ou, em português, “O caminho batido”, metáfora da vida na estrada: restaurantes de posto de gasolina, vilas industriais abandonadas, parques de diversão, bares e pocilgas e seus letreiros enormes de neon. Bob Dylan pinta hoje a América que foi tema de inúmeras de suas canções, e que hoje é apenas uma sombra.

A exposição no Victoria & Albert é ainda mais problemática. Trata da segunda metade dos anos 60, com foco nos movimentos artísticos e políticos americanos e ingleses. Durante quase todo esse período, morei em Copacabana, mas posso dizer sem titubear que experimentei a “revolução” desses anos. Quando cheguei aos Estados Unidos pela primeira vez, tive contato com os primeiros membros da SDS (Students for a Democratic Society), em Princeton, e fiquei impressionado com o compromisso e a coragem de todos eles, viajando para o extremo sul em apoio ao movimento pelos direitos civis, onde alguns de seus colegas “desapareceram”. No meu retorno para os EUA, em 1968, Martin Luther King e Bobby Kennedy foram assassinados. E as universidades estavam em revolta contra a Guerra do Vietnã. Depois, mais estudantes foram mortos em “confrontos” com a Guarda Nacional.

Os extremos daquele período também marcaram presença na exposição, especialmente a difusão do LSD e da benzedrina, a erupção da cultura das drogas, primeiro nos Estados Unidos e, mais tarde, em Londres. As canções desse período, em consonância com as artes visuais das capas dos discos de rock, têm a marca do impacto do ácido e dos outros alucinógenos. Assisti a uma nova cultura se formar, ao som de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, vestindo calças boca de sino (que eu usei pela primeira vez em Princeton, em 1965). Assisti, também, à trilha sonora dos protestos de uma juventude insatisfeita se tornar jingle de comerciais dos mais variados tipos de produtos.

Essa é, talvez, a verdadeira lição desses anos. Porque, no fim, a revolução “cultural” foi vencida no seu próprio jogo. Mudou-se o mundo, feridas se abriram, e um horizonte conservador se desvelou aos poucos em toda parte. Bob Dylan já não é mais uma das vozes da insatisfação dos jovens, mas o poeta do sentimento nostálgico de um mundo perdido, de tristes esquinas e cidades em ruínas. E é essa, também, a relevância do seu Nobel de Literatura, e da sua recusa a receber o prêmio em mãos. Aguardo com curiosidade o discurso que preparou para ser lido no dia da premiação: o que Bob Dylan ainda teria a dizer para o mundo?

Kenneth Maxwell é historiador