quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Ruy Castro: "Rushdie para o Grammy"

Folha de São Paulo




Em "De Volta para o Futuro", que se passa em 1955, o cientista pergunta ao garoto vindo do futuro quem é o presidente dos EUA em 1985. O garoto responde com naturalidade: "Ronald Reagan, claro". O cientista cai das nuvens: "Reagan, o ator??? E quem é o vice-presidente? Jerry Lewis???". Em 1955, Reagan já não era levado a sério nem em Hollywood. E Jerry Lewis, que ainda não fora descoberto pelo "Cahiers du Cinéma", era o idiota que fazia aqueles filmes com Dean Martin.

Em 2016, não apenas Bob Dylan levou o Prêmio Nobel de Literatura como a ONU acaba de escolher a Mulher-Maravilha como sua "embaixadora honorária para o empoderamento de mulheres e meninas". Juro. E, já que Hillary Clinton deverá ser a próxima presidente americana, quem será sua Secretária de Estado para cuidar do terrorismo? Beyoncé?

É a vitória tardia de uma brincadeira que fazíamos por volta de 1970 — uma espécie de agit-prop que, sem o gume suicida da contracultura, propunha valores populares contra uma certa visão inerme e repolhuda da cultura, então predominante. Uma das bandeiras era a de que o Marx mais radical era Groucho, não Karl. Que faríamos melhor se estudássemos Chacrinha do que Shakespeare. E que, à luz do estruturalismo, as tiras de "Peanuts" valiam o Proust inteiro. Etc.

Logo nos cansamos da brincadeira e fomos tratar da vida, mas, para nosso estupor, essa ideia ganhou seguidores a sério — até hoje. Há tratados sociológicos sobre o Pato Donald. O iê-iê-iê é estudado musicalmente. E até Rod Stewart foi armado Sir — o que Bernard Shaw, H. G. Wells e Graham Greene nunca foram.

Shows com cantores abrilhantam os festivais literários. Já os escritores não são chamados a falar nos shows de música. Se Bob Dylan é Nobel de Literatura, queremos Salman Rushdie para o Grammy de Disco do Ano.