Dia que reluz, este 12 de maio. No Brasil sob o lulopetismo, o cotidiano esteve sujeito à abolição pelo desfile incessante de aberrações e, naquela quinta-feira especial, preservei a rotina para experimentá-la sob a luz da notícia esperada. Com um currículo miúdo, experiência nenhuma, ela foi escolhida. Mas ela própria não só não dava importância no começo, como recebeu a novidade com a sobriedade de um econômico “valeu” e um beijo na mãe involuntariamente contida: minha filha foi selecionada para participar de um filme.
Há dois meses somente, Lula, metamorfoseado em jararaca, vociferou que teriam de lhe acertar na cabeça para vencê-lo, a mesma cabeça que expeliu a ideia de fazer de uma dilma a presidente da república, e correu para se esconder debaixo da saia institucional dela. O Pitta de Lula, no paralelo perfeito de Augusto Nunes, tinha tudo para funcionar no projeto de poder perene segundo a cabeça do jeca e do poste: demagogo e vigarista, ele achava Dilma ótima e mulher; demagoga e vigarista, ela se achava ótima e mulher. Tentando obstruir a Justiça, o golpe na institucionalidade com a nomeação dele para o Ministério, vazado com arrojo por Sérgio Moro, apressou a aniquilação de ambos.
Enquanto preparava o café e minha filha se arrumava para ir à escola, olhei o dia lá fora ocupado em ser especial: a chefe da segurança do condomínio orientando a motorista do caminhão que veio buscar móveis para doação; estudantes indo para a escola, uma garota de minissaia (naquele frio!?); o início do primeiro congestionamento do dia; uma amiga chegando com o táxi dela ao ponto, ali em frente; a vizinha indo trabalhar toda lindona. Era a vida, submetendo-se ao risco de fazer sentido no país destruído.
Sob as ruínas do caráter autoritário, a farsante deixava o Planalto insistindo nas mentiras transparentes do lero-lero vitimista. Antes, uma mulher recorrera ao Papa Francisco, aquele cuja conversão ao Cristianismo ainda é aguardada: Letícia Sabatella, aquela que não se manca, foi à deslumbrante Roma, cidade aberta, mostrar como uma mulher e bonita pode ser parecidíssima com Waldir Maranhão. Alheia a si mesma e à realidade, Dilma, presa no próprio labirinto, poderia fazer da renúncia o fio de Ariadne que a libertaria e apagaria sua sombra inútil do caminho. Para tanto, seria necessário algum grão da dignidade que pensa ter a mulher que pensa ser.
No parágrafo solitário do currículo da minha filha, solicitado pela seleção do elenco para o filme, informei que ela foi finalista das olimpíadas brasileira e paulista de Física. Quando soube que gostaria de fazer o curso de aprofundamento na ciência, me surpreendi, pois não imaginava que ela gostasse do assunto: não é pela Física, mamãe, é pelo conhecimento, pensar outras coisas, de outras maneiras.
Há o retrocesso nos direitos, de que Miriam Leitão se queixou por só haver homens brancos no Ministério de Temer. E daí? Sob o governo dito popular e de esquerda com ministras ou chefiado por uma mulher, os direitos das denominadas minorias só eram defendidos pelos governistas e descolados-tipo-assim-bacanas se o integrante delas fosse do mesmo campo ideológico. Seria interessante uma mulher, entre tantas brasileiras competentes e honestas, no Ministério. Não para o governo se fingir progressista, mas para aquilo que qualquer governo decente faz, com ou sem mulheres: respeitar o conjunto dos cidadãos como indivíduos. Sem adjetivo, condição ou causa.
Provavelmente, se Temer nomeasse uma mulher para o Ministério seria acusado de demagogo. Não adianta: um governo reconhecido como de direita (mesmo da progressista) nunca contará com a mesma benevolência que um de esquerda (mesmo da regressiva, se é que há outra na América Latina). Que Temer faça um governo competente e digno. Depois de 13 anos sem nada disso, é o que cobrarei.
Enquanto Miriam Leitão denunciava o retrocesso nos direitos sem explicar quais Temer revogara, eu flagrava, naquele dia especial, as mulheres tocando a vida e tomava café com minha filha que poderá ser cientista ou atriz, ou nada disso, ou tudo isso e mais o que a mais viva potencialidade dela inspirar. Na pequena cozinha impregnada pelo cheiro de café e de panquequinhas de maçã, pensei nas enormes dificuldades do país, nas minhas, nas de outras mulheres e homens e sorri como o pequeno que desafia o grande porque, buscando apenas um país de cotidiano normal, tiramos do poder uma súcia que parecia dominar a todos. Foram incontáveis 13 anos, mas uma precocidade insanável para quem aspirava a nada menos do que a perenidade. Reluz, 12 de maio, reluz.