O que o PT realiza na cidade de Salvador não é um Congresso convencional. Não, não. Absolutamente. Tomado pela cerimônia de abertura, o encontro de três dias é uma espécie de psicongresso convocado para tratar o partido de suas loucuras.
Estrela da noite, Lula evitou o improviso. “Para não falar com o fígado”, leu um discurso preparado com o auxílio do pessoal do Instituto Lula. Queria “ser o mais tranquilo que um orador pode ser”. Ou seja, estava completamente fora de si.
Enquanto Lula posava de maníaco, Dilma fazia as vezes de depressiva. Ela sooucarente. Foi com se receasse que o partido a deixe só. Nas horas difíceis “é que realmente sabemos com quem podemos contar”, disse. “Sei que posso contar com o PT e com os partidos aliados. Eu preciso contar com o meu partido!”
Minutos antes, o presidente do PT, Rui Falcão, informara que o partido apóia Dilma. Mas só até certo ponto. O ponto de interrogação. “É inconcebível para nós qualquer política econômica que seja firme com os fracos e frouxa com os fortes”, bicou Falcão. “O PT não acredita que seja possível retomar o crescimento provocando recessão nem combater a inflação com juros escorchantes e desemprego.”
Quer dizer: tirando a ortodoxia fiscal que o tucano Joaquim Levy implementa na Fazenda e o torniquete monetário que Alexandre Tombini aplica no Banco Central, Dilma pode contar com o PT para o que der e vier.
A loucura insinuada no lero-lero de Falcão é sintoma da senilidade provocada pelo poder longevo. Tendo obtido sua quarta vitória presidencial, o PT comporta-se como o velho da anedota que, depois de conquistar a mulher dos sonhos e levá-la para a viagem de núpcias, não se lembra para quê.
“É claro que temos problemas”, admitiu Lula, ainda fora de si. “Que país não tem? O desemprego aumentou um pouco, é verdade. A inflação subiu, também é verdade. Só que ninguém está mais preocupado com a inflação e com o emprego do que os trabalhadores, o nosso partido e a nossa presidenta da República.”
Algo ciclotímico, Lula oscilava entre a aceitação do presente e a regressão total. “Nós sabemos muito bem o que era viver num país com desemprego de 12% ao ano e a inflação de 12,5%. Foi essa a herança que nós recebemos de oito anos do governo daqueles que agora querem nos ensinar como governar esse país.”
Não importa que a supergerente tenha se comportado como uma dona de casa que guarda o sal numa lata de açúcar na qual está escrito café. Prisioneiro de sua doce neurose, Lula parece acreditar que, falando mal do governo tucano de FHC, a ruína que Dilma legou para si mesma desaparecerá.
Dilma não se sente culpada. O mundo é que lhe atrapalha a presidência. “Nós não causamos essa crise. Não podemos ser responsabilizados por ela. […] Nós estamos no sétimo ano da luta contra a crise internacional [iniciada em 2008]. Essa luta para proteger os brasileiros teve um alto custo fiscal. […] Foi feito com o dinheiro do orçamento federal.”
O que fazer? Primeiro, terapia de choque. Pau no FHC: “Outro governo, sem os compromissos que nós temos, teria escolhido o caminho mais fácil. O caminho que eles sempre usaram: desemprega e reduz os salários logo de uma vez, acaba com os investimentos em infraestrutura e com os programas sociais. Sempre foi assim no Brasil antes do governo Lula, em 2003.”
Depois, em mais uma evidência de que o PT no poder virou um caso clínico, Dilma como que justificou-se por adotar as medidas impopulares que acusava Aécio Neves de tramar. “Nós não queríamos isso. Nós não podemos querer isso. Mas agora, depois de sete anos de sustentar toda uma política contra a crise, nós temos de fazer uma escolha: ajustar o mais rápido possível a economia para voltar a crescer. Quanto mais rápido nós ajustarmos, mais rápido nós retornaremos ao crescimento.”
A crise fez de Dilma uma ex-Dilma. A antiga arrogância não cabe no divã. “Preciso de cada um de vocês, de toda a força que vocês podem me dar estando ao meu lado.” Na opinião da presidente, os “queridos militantes petistas'' têm muito a fazer enquanto esperam pela ressurreição do PIB.
“Não se submetam aos que torcem pelo nosso fracasso”, rogou Dilma. “Municiem-se de informações, argumentos, que desmintam a acusação de que o país está preso numa armadilha e numa paralisia. Por exemplo: falem da Petrobras! A Petrobras reorganizada, capaz de punir aqueles que dela se beneficiaram iliciatamente. Mas falem com orgulho da Petrobras!”
Falar da Petrobras?!? E com orgulho?!? O caso é realmente grave. À medida que Dilma discursava, o plenário do psicongresso foi esvaziando. Muitos militantes preferiram abandonar o tratamento no início. Livraram-se do trauma de ter que ouvir as derradeiras palavras da presidente.
“Eu quero falar também do combate à corrupção”, disse ela, por exemplo. “Esse governo e o governo do presidente Lula enfrentou isso com determinação. Nós temos de ter coragem de disputar isso. Determinação inédita na história do nosso país. Uma determinação que está refletida na punição, pela primeira vez, de corruptos e corruptores.”
Pouco antes, o companheiro Rui Falcão lamentara que o tesoureiro petista João Vaccari Neto continue preso em Curitiba “sem provas” do seu envolvimento na roubalheira da Petrobras. E a militância, em coro: “Vaccari, guerreiro, do povo brasileiro…”
Lula disse que há dez anos os jornalistas anunciam a morte do PT. “Mas estamos aqui para demonstrar que o PT continua vivo e muito preparado para novos combates. Machucado, sim, mas bem vivo, enfrentando a mais sólida campanha de difamação que um partido político já sofreu nesse país. Mas vivo, de cabeça erguida.”
A morte, como se sabe, atenua todos os julgamentos. Mas o PT talvez tivesse que morrer meia dúzia de vezes por ano na última década para que as pessoas voltassem a enxergá-lo como aquela legenda imaculada de outrora. A presidência levou o partido à demência. A legenda deslizou para a vala comum da irracionalidade política. Como atestou Lula, o PT está vivo. Mas ainda não teve alta.
