domingo, 2 de novembro de 2014

Léguas de distância: quatro horas e um cavalo separam o Rio de Londres

Henrique Gomes Batista, Vivian Oswald e Cássia Almeida - O Globo

A distância percorrida é a mesma, mas o tempo gasto no Rio é três vezes maior

Em Queimados, charretes levam passageiros até a estação de trem - Márcia Foletto / Agência O Globo


RIO e 
E LONDRESA empregada doméstica Belmira dos Santos Felix, de 49 anos, tem algo em comum com a inglesa Sara Warr, de 26 anos: ambas moram a cerca de 50 quilômetros de onde trabalham e vivem em metrópoles “olímpicas” de porte semelhante. Mas as similaridades acabam aí. Enquanto a inglesa perde duas horas diárias para ir e voltar de Beaconsfield ao Centro de Londres, onde trabalha, Belmira gasta seis horas de seu dia para fazer o trajeto Queimados-Flamengo-Queimados. E, apesar de usar trem e metrô, o primeiro transporte que ela usa no dia, às 6h, é algo impensável para um plebeu inglês, ao menos no século XXI: uma charrete.
— Pago R$ 1,50 pela viagem de charrete até a estação da Supervia. Bem que ele podia aceitar o Riocard (bilhete único), era só a gente passar o cartão entre os dentes do cavalo — brinca Belmira, que trabalha oito horas por dia numa casa no Flamengo em troca de um salário mensal de R$ 960 e gasta duas horas e meia para chegar ao local de trabalho.

Mas a charrete de seu Zé do Galo — sergipano de 78 anos que ganhou essa alcunha devido ao passado como dono de rinha — não está integrada ao sistema de transporte do Rio, embora seja fundamental para parte da população urbana de Queimados, que não é atendida adequadamente por ônibus.

Se o Rio tivesse um sistema de transporte tão eficiente quanto o londrino, Belmira teria mais 20 horas livres por semana. Mas ela mora na metrópole brasileira onde os trabalhadores demoram mais tempo nos deslocamentos. São, em média, 49 minutos para chegar ao trabalho, e quase um terço dos moradores do Grande Rio perde mais de uma hora no trajeto. Ao contrário do que se pensa, São Paulo não é pior do que o Rio nesse quesito. Lá, o tempo médio para chegar ao trabalho é de 46 minutos.

— O tempo de deslocamento no Rio piorou muito. É visível. Em 2011, esse tempo era maior em São Paulo — afirma Rafael Pereira, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que está em Oxford, na Inglaterra, estudando a desigualdade no tempo gasto no transporte brasileiro.

Além de usar só uma condução para chegar ao trabalho, a publicitária Sara Warr usufrui do conforto dos trens londrinos. Se conseguir pegar o mais rápido, são apenas 25 minutos, o tempo de ler o jornal com a ajuda do wi-fi do trem. Não há espera. Quanto mais cedo, mais vagões. Foi a alternativa da operadora para dar conta do fluxo de trabalhadores nos horários de pico. Aqui no Rio, na volta para casa, Belmira demora mais tempo: três horas e meia. A hora extra é usada para conseguir embarcar num trem na Central. Todos ficam tão lotados que é impossível entrar no primeiro a sair.

‘PARECE QUE É A CAVALARIA ENTRANDO NO VAGÃO’

O bom humor de Belmira às 6h é um antídoto contra a jornada extenuante. Além de enfrentar a charrete entre o bairro São Simão, onde mora, e a estação, encarar a superlotação do trem e do metrô, ela ainda convive com o preconceito:

— O povo olha estranho para a gente no trem, porque viemos de charrete. Não tem jeito, o ônibus não passa nesse horário, e as vans são muito pequenas, a gente fica apertada. Meu sonho era trabalhar por conta própria, fazer salgado. Poderia trabalhar em casa e ficar mais perto dos meus filhos. Queimados está muito violento, e a gente fica com medo — diz ela, que acorda às 5h e dorme à meia-noite.

Dormir no trem, nem pensar. Muito raramente, ela consegue um assento na viagem. Mudanças nos trens da Supervia, responsável pela operação das linhas, nem sempre agradam a Belmira. A alteração da semana passada para tornar as viagens mais rápidas tornou o percurso mais penoso.

— Era horrível, ficou pior. O trem expresso demora a chegar, deixando as plataformas mais lotadas. Parece que é a cavalaria entrando no vagão. Antes, a gente viajava apertado, agora a gente viaja espremido — afirma ela, que conta que os patrões chegam a desconfiar dela diante do número de vezes em que chega atrasada por problemas no ramal de Japeri.

Do lado de lá do Atlântico, a queixa da publicitária Sara é o preço. De Beaconsfield até Londres, o bilhete de ida e volta custa 22,80 libras (cerca de R$ 91). Fora do horário de pico, após as 9h47m, o preço cai a 15,90 libras (R$ 63,60). Quem compra as passagens para o mês fechado paga menos: R$ 1.400. E, para o ano inteiro, cerca de R$ 14 mil (R$ 1.167 por mês). Esse valor dá direito ao uso ilimitado de metrô e ônibus em Londres. Ainda é mais barato que o custo do carro, já que a capital inglesa cobra pedágio para se entrar na cidade. O preço do transporte reflete o padrão de salários no país. Londres é a cidade com 12º maior custo de vida entre 211 pesquisadas pela consultoria Mercer.

— Vale a pena, pois os aluguéis fora da cidade são bem mais baratos. Não dá para ir de carro a Londres. É caro e imprevisível. Agora que sou jovem, dou conta. Mais para frente, se quiser ter filhos, talvez vá para mais perto do trabalho.

Apressado, John Carter, headhunter na City, o centro financeiro da capital, limita-se a dizer:
— É muito caro para ter que voltar de pé no trem. Se sair cedo, não tem jeito, os trens estão cheios — diz, enquanto veste o colete fluorescente para usar a bicicleta que deixou na estação e voltar para casa.

Comparado aos preços de Londres, Belmira até gasta pouco. São R$ 5,60 do bilhete único, mais R$ 1,50 da passagem da charrete. Por mês são R$ 343,20, custeados pelo patrão.
O número de passageiros que usa as ferrovias britânicas não para de crescer. Foram 713 milhões de viagens nos últimos seis meses. A maior parte das linhas é operada por empresas privadas. Um dos maiores desafios do governo é tentar conter os sucessivos reajustes. Já está previsto para janeiro de 2015 um aumento médio de 2,5% nas tarifas. Pode parecer pouco, mas é seis vezes mais do que a correção média dos salários no país no período.

— Não é só trem que é caro. Todos os meios de transporte no Reino Unido são caros. Funcionam bem, mas pesam no salário da gente — diz Marc Short, na saída do trem de Beaconsfield, enquanto desamarra a bicicleta no depósito da estação.

O tempo perdido no trânsito vem aumentando ano a ano desde 1992. No início dos anos 1990, o tempo médio de deslocamento para o trabalho nas grandes metrópoles era de 36,4 minutos. Em 2013, chegou a 41,7 minutos, em média. A piora foi tão intensa que 20% dos brasileiros levam mais de uma hora para chegar ao trabalho, ou seja, uma em cada cinco pessoas. E a renda pesa nessa hora.

— As pessoas de renda mais baixa acabam morando mais longe. Os pobres são expulsos para a periferia — diz Pereira, do Ipea.

. - Editoria de Arte/O Globo


MAIS POBRES GASTAM MAIS TEMPO NO TRÂNSITO

Estudo do economista de 2009 mostrava a distância de renda em minutos. Os 10% dos trabalhadores mais pobres gastam, em média, 20% mais tempo no transporte do que os 10% mais ricos. Entre os que ganham menos, 19% levam mais de uma hora para chegar ao trabalho. No topo da pirâmide de renda, essa parcela cai para 11%.

O secretário municipal de Transportes, Alexandre Sansão, diz que o tempo de deslocamento no Rio vai melhorar após as Olimpíadas de 2016:

— O Rio é a cidade que está fazendo o maior investimento em transporte de alta capacidade no Brasil. No fim deste ano, os dois BRTs transportarão 500 mil pessoas/dia. A mesma quantidade da Supervia. Sabemos que há muito a fazer, mas a demanda era imensa. As últimas grandes obras na cidade foram em rodovias, como as linhas Vermelha e Amarela, mas não em transporte público.

As críticas de usuários dos BRTs, no entanto, são frequentes, especialmente devido à lotação.

Enquanto o transporte não melhora, seu Zé do Galo ganha a vida com a charrete puxada pelo cavalo Criolo. Trabalha de 4h30m às 10h30m e tira cerca de R$ 50 por dia, levando 30 pessoas à estação:

— O dinheiro dá para viver, não podemos explorar. Os donos de vans queriam que a gente subisse a passagem para R$ 2, mas não podemos fazer isso.