Os artigos de J. R. Guzzo impedirão o assassinato da verdade
A seriedade do semblante da figura de terno e gravata que avançava pelo corredor do prédio na Marginal do Tietê era acentuada pelos óculos de aros grossos. Os cabelos já ensaiavam no alto da cabeça o começo da debandada, mas os fios ainda abundantes nas partes laterais garantiriam longa vida às costeletas. Os botões da camisa social lutavam para resistir à pressão do ventre. E pendia do ombro esquerdo uma bolsa capanga que não rimava com aquele homem cuja idade oscilava em torno dos 30 anos. Era assim o José Roberto Guzzo que vi pela primeira vez naquela tarde de 1973. Ali estava um homem de poucos amigos, poucas palavras e pouca paciência. Com alguns quilos a mais, concluí.
Muitos anos, centenas de jantares e incontáveis cálices depois, contei a J. R. Guzzo que o alvo do exame visual não se saíra bem naquele diagnóstico
— É assim mesmo — sorriu o já meu amigo havia muito tempo. — Todos erram na primeira avaliação. O problema é que jornalista brasileiro detesta acertar. Erra também na segunda, na terceira, na quarta… Na última também.
Ao menos dessa escapei, penso grávido de alívio. Durante 50 anos, acompanhei atentamente (ou resgatei o quanto antes) as etapas e façanhas que marcaram a trajetória profissional de Guzzo. O correspondente internacional lutou bravamente para impedir a eternização da frase nascida com a primeira batalha: quando começa um conflito, a primeira vítima é a verdade. O editor da Veja ensinou meio mundo a escrever direito. O diretor de redação conduziu a revista por altitudes sequer sonhadas por concorrentes brasileiras. O diretor da empresa salvou veículos da Editora Abril da condenação à morte decretada por extremistas de esquerda fantasiados de dirigentes. O ultraesquerdista Rui Falcão, por exemplo, infiltrara-se na cúpula da Exame para liquidar a maior revista do Brasil capitalista. Escalado pela Abril para impedir o crime, Guzzo foi mais rápido no gatilho. E Falcão foi brincar de revolucionário no PT. Ainda brinca.
A vida é a soma das nossas escolhas, sabe-se desde Adão e Eva. Portanto, é o resultado dos convívios em que embarcamos que melhora ou piora o ato de existir. Escolha direito, porque tem gente que confirma que a vida vale a pena e a dor de ser vivida, mas também tem gente que é melhor perder do que achar. Já neste século 21, o amigo Jairo Leal sugeriu que Guzzo ocupasse duas vezes por mês a última página da Veja. Poucas semanas depois, ele já era o mais lido dos colunistas. Nem por isso o comando da revista, tempos mais tarde, deixaria de vetar um artigo que dizia verdades sobre o Supremo Tribunal Federal.
Avesso a gestos espetaculosos, o maior dos jornalistas caiu fora da estalagem agora hostil. E se juntou a Jairo na criação da Oeste. O que Guzzo não podia adivinhar é que chegara a hora de materializar o sonho perseguido desde a mocidade: escrever, apenas escrever, livre de temores e injunções que orientam as decisões dos patrões convencionais. Jairo é desde o começo o número 1, o publisher, o chefe. Nunca lhe passou pela cabeça encarnar um patrão à moda antiga. Essa coisa jurássica morreu. Caprichos e vontades de patrão foram substituídos por pactos com os leitores. Oeste vem cumprindo o que prometeu desde o parto da primeira edição. Os donos, no fim das contas, são os assinantes. Nós lhes garantimos o apego aos fatos, à verdade, à informação exata.
Inteiramente à vontade para expressar-se, J. R. Guzzo nunca foi tão feliz. Quem lê seus textos tem a sensação de que escrever não é tão complicado assim. Culto, inventivo, brilhante, dono de um repertório vocabular admirável, ele poderia ter escrito nestes cinco anos três romances, dois ensaios, dezenas de poesias e uma tese de doutorado. Preferiu mostrar com esplêndida clareza quais são os problemas do país e como resolvê-los, quem é o bandido e quem é o mocinho, quem é ladrão e quem é honesto.
Daqui a muitíssimos anos, quem quiser compreender estes tempos
estranhos terá de buscar a verdade nesta revista. E terá de ler o que
Guzzo escreveu. Imortalidade é isso.
Augusto Nunes - Revista Oeste