sexta-feira, 8 de agosto de 2025

'A farsa escancarada do 8 de janeiro', por Cristyan Costa

 Documentos revelam novos capítulos da sanha persecutória do ministro Alexandre de Moraes para prender inocentes, violando as leis e a Constituição


O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, durante a cerimônia de diplomação na sede do TS - Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil 


D urante uma sessão plenária no Supremo Tribunal Federal (STF), em março deste ano, o ministro Alexandre de Moraes reafirmou a “imparcialidade” do STF nos julgamentos dos manifestantes do 8 de janeiro. De acordo com o magistrado, aqueles que foram julgados tiveram direito à ampla defesa e receberam punições conforme o peso dos “atos golpistas”. Mais: o juiz do STF lembrou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) oferecera, no mês anterior, uma denúncia que tratava do que seria uma tentativa de ruptura institucional. Além disso, a PGR propôs aos manifestantes um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), a fim de que, confessando crimes e cumprindo algumas exigências, pudessem se livrar do tormento. Segundo Moraes, quem negou o ANPP da PGR é porque “queria mesmo uma intervenção militar no Brasil”. 

A narrativa de Moraes, segundo a qual o processo vem seguindo todos os trâmites legais, não resiste aos fatos. Desde o começo das prisões arbitrárias, Oeste deu voz aos silenciados e jogou luz sobre os esquecidos pela velha imprensa, entre eles autistas, idosos e pessoas com doenças graves. A revista também denunciou inúmeras violações de direitos humanos e cerceamento às defesas. As engrenagens desse mecanismo persecutório perverso ficaram mais expostas na Vaza Toga, como ficou conhecida uma série de reportagens divulgada pela Folha de S. Paulo no ano passado. O jornal comprovou a atuação parcial de Moraes como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para interferir na eleição de 2022 em prol de Lula. Agora, o escândalo ganhou um capítulo 2. Escrita pelos jornalistas David Ágape e Eli Vieira, a reportagem é baseada em informações divulgadas por assessores do TSE responsáveis pelo “Ministério da Verdade”. 


Capas que a Oeste já deu sobre o 8 de janeiro | Foto: Montagem Revista Oeste


Aparato de perseguição Em uma reportagem publicada na Edição 215 (leia mais neste link), Oeste desvendou a AEED, que funciona como uma espécie de Ministério da Verdade, da distopia 1984. A Vaza Toga 2 mostrou que a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE, que era chefiada por Tagliaferro, foi usada para municiar o STF com informações frágeis que mantiveram inocentes presos. Pior: provou que a força-tarefa de Moraes no TSE produzia “provas”. Simples comentários de manifestantes nas redes sociais, por exemplo, eram suficientes para rotular alguém como “certidão positiva”, classificação interna que ajudava a manter alguém preso. As centenas de documentos nunca foram compartilhados com os advogados ou promotores, em grave violação às defesas. 

O modus operandi: policiais federais encaminhavam uma série de listas com nomes que passavam por uma espécie de raio-x. Eram conferidos desde dados relacionados à Receita Federal até consultas no Registro Nacional de Carteiras de Motorista. O TSE também usou seus sistemas internos, como o GestBio, o banco de dados biométrico de cadastrados, que contém imagens faciais, impressões digitais e dados pessoais de quase todos os brasileiros adultos aptos a votar no Brasil.


Depois disso, a equipe vasculhava plataformas de mídia social buscando postagens que pudessem ser interpretadas como “antidemocráticas”. Os critérios da polícia política de Moraes variavam caso a caso, e levavam em conta posts a respeito de protestos, críticas ao STF ou ao presidente Lula, a participação em grupos no Telegram ou WhatsApp, o retuíte de conteúdo rotulado como “desinformação”, menções em reportagens ou denúncias anônimas online. Cada certidão se baseava em pesquisas rápidas no Facebook, Instagram, X, TikTok, YouTube, Telegram e Gettr. Se algum conteúdo considerado “antidemocrático” fosse encontrado, o detido recebia a “certidão positiva”. As fontes para justificar os rótulos eram notícias e perfis anônimos no X, frequentemente sem verificação de contexto ou autoria. A classificação era suficiente para justificar a detenção, independentemente de antecedentes criminais, comportamento violento ou mesmo a presença nas sedes dos Três Poderes, onde centenas de pessoas se abrigaram em 2023.


O ritmo de análise de informações para manter manifestantes na cadeia era frenético e aparentemente improvisado. As certidões eram emitidas, retiradas e reemitidas em questão de minutos, em razão de nomes errados ou informações incompletas. Mensagens do grupo de WhatsApp reveladas pela Vaza Toga 2 mostram funcionários recebendo listas informais de detidos diretamente da polícia, incluindo nomes, fotos e números de identidade. Num dos áudios, um policial federal pediu confidencialidade porque os dados pessoais dos manifestantes, como nome completo e data de nascimento, eram “muito procurados”, indicando que o material estava sendo compartilhado fora de canais legais e até com determinados veículos de mídia. 

Essa “Justiça paralela” chegou a recrutar colaboradores externos para dar conta do volume de trabalho, incluindo militantes de esquerda, universidades e agências de checagem, para se infiltrar em grupos de bate-papo privados. Moraes autorizava as ações, por meio de e-mails enviados para sua conta pessoal, evitando canais institucionais. A coordenação do grupo era de Cristina Yukiko Kusahara, chefe de gabinete de Moraes no STF e braço direito do magistrado, que criou e administrou um grupo do WhatsApp no qual dava ordens a Tagliaferro e a outros juízes auxiliares que trabalhavam para o juiz do STF no TSE. Entre eles estavam Marco Antônio Vargas e Airton Vieira, nomes que ficaram conhecidos na primeira etapa desses vazamentos.


Mensagens entre Cristina Yukiko Kusahara, chefe de gabinete de Alexandre Moraes, e Eduardo Tagliaferro | Foto: Divulgação/Civilization Works


Mensagens entre Cristina Yukiko Kusahara, chefe de gabinete de Alexandre Moraes, e Eduardo Tagliaferro | Foto: Divulgação/Civilization Works  


Cristina Yukiko Kusahara alterou grupos depois de repercussão de entrevista de Oeste com Eduardo Tagliaferro | Foto: Divulgação/Civilization Works 

“A Constituição estabelece que somente a polícia judiciária e o Ministério Público têm autoridade para investigar crimes”, constatou Marco Aurélio Mello, ex-ministro do STF. “Quando o TSE assume esse papel, ele ultrapassa sua jurisdição e distorce o modelo de justiça criminal.” André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, acrescentou que a existência de um “gabinete de limpeza ideológica é algo que se via em regimes totalitários”. “Quando se separam as pessoas por ideologia, o que te impede, amanhã, de separá-las por outras razões?”, interpelou. “Choca a desumanidade.” 

Presos políticos 

Uma das vítimas do sistema foi o ambulante Ademir Domingos Pinto da Silva, cuja história Oeste revelou em março de 2024. O homem não participou do 8 de janeiro, mas acabou detido no acampamento montado nas cercanias do Quartel-General (QG) do Exército, em Brasília, no dia seguinte ao quebra-quebra na Praça dos Três Poderes. Silva dirigiu-se ao local apenas para vender suas mercadorias e, ao chegar lá, não conseguiu mais sair. O sacoleiro ficou preso por quase cinco meses na Papuda. Contra ele, o STF usou uma certidão do TSE, na qual a Corte Eleitoral citou posts que Silva fez em 2018 com críticas a Lula. Ao ser solto, passou a usar tornozeleira eletrônica, além de ter de obedecer a várias medidas restritivas. Em outubro de 2024, o STF o condenou a um ano de cadeia, mas converteu em pena privativa de liberdade. Entre outras obrigações, Silva terá de fazer um “curso da democracia” e pagar multa de R$ 5 mil. 


O sacoleiro Ademir da Silva, de 54 anos | Foto: Reprodução

Silva não foi o único. Em outro caso, uma mulher identificada como “Vildete” foi erroneamente sinalizada como “positiva”. Minutos depois, a equipe de Moraes percebeu que a confundira com outra pessoa. Por isso, alterou sua classificação para “negativa”. A mulher era provavelmente Vildete da Silva Guardia, dona de casa de 74 anos, que também teve o seu caso revelado por Oeste e que acabou sendo condenada a 11 anos de cadeia. De acordo com a Vaza Toga 2, mesmo depois de a AEED corrigir a certidão e encaminhar novamente ao STF, Moraes manteve a Vildete errada no presídio Colmeia, em Brasília, por 21 dias. A soltura veio apenas após a defesa da mulher comprovar que ela desenvolveu uma hemorragia intestinal.


A aposentada Vildete da Silva, de 73 anos - Foto: Reprodução/Redes Sociais 

Segundo a Vaza Toga 2, a chefe de gabinete de Moraes estabeleceu um “controle rigoroso” e ritmo de urgência. Ela forneceu os modelos de como as certidões deveriam ser feitas e dirigiu a forma como os investigadores deveriam agir. A mulher deixou claro que o objetivo era determinar quem deveria permanecer na prisão e quem poderia ser libertado. “A PGR pediu a liberdade provisória deles, mas o ministro não quer soltar sem antes a gente ver nas redes se tem alguma coisa”, escreveu a chefe de gabinete, em uma troca de mensagens no WhatsApp com a força-tarefa do magistrado.

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Mensagens entre Cristina Yukiko Kusahara, chefe de gabinete de Alexandre Moraes, e Eduardo Tagliaferro, no grupo ‘Audiências de Custódia’ no WhatsApp | Foto: Divulgação/Civilization Works 


Mensagens entre Cristina Yukiko Kusahara, chefe de gabinete de Alexandre Moraes, e Eduardo Tagliaferro, no grupo “Audiências de Custódia” no WhatsApp | Foto: Divulgação/Civilization Works 


Anistia, já Nesta semana, a oposição ao governo Lula deu início à reabertura dos trabalhos do Legislativo com uma série de obstruções na Câmara e no Senado. Depois de horas de negociação, os parlamentares conservadores receberam a promessa, de outros líderes partidários, de que, na semana que vem, o presidente Hugo Motta (RepublicanosPB) vai pautar a anistia aos presos do 8 de janeiro, além do fim do foro privilegiado, de modo a reduzir a influência do STF sobre o Legislativo e resgatar a independência de um Congresso Nacional que, há seis anos, vive de cócoras. 

Após tantas denúncias de abusos e violações contra manifestantes do 8 de janeiro, por causa de uma narrativa de “golpe” para manter um projeto de poder, é imperativo que o perdão seja aprovado no Parlamento. Transformar manifestantes em criminosos políticos é coisa de regimes autoritários. O que se pede com a anistia não é impunidade — é o resgate da proporcionalidade. Manter cidadãos presos por atos que não cometeram é injustificável. Justiça que se presta ao revanchismo vira perseguição. E perseguição política não tem lugar numa democracia. 

Cristyan Costa - Revista Oeste