Ilustração: Shutterstock
A nova "Lei Antipiada” mira os espaços de sociabilidade do humor. Redutos nos quais, imunes ao obsessivo moralismo político do regime, os indivíduos podem partilhar o dom do riso, tornando-se com isso mais e mais humanos
A mais poderosa tirania mental no que chamamos de mundo livre é o politicamente correto, que é tanto e imediatamente evidente, observado em toda parte, quanto invisível, qual um gás venenoso, pois suas influências estão frequentemente distantes da fonte originária, manifestando-se como uma intolerância generalizada (…) A submissão ao novo credo não teria se dado tão rápida e profundamente se a rigidez comunista não tivesse, por toda parte, permeado as classes letradas, pois não era preciso ser um comunista para absorver o imperativo de controlar e limitar: as mentalidades já haviam sido amplamente expostas à ideia de que o livre pensamento e as artes criativas deveriam submeter-se às altas autoridades da política.”
Doris Lessing, “Censorship and the Climate of Opinion”, prefácio a Censorship: A World Encyclopedia, 2001
OCanal Hipócritas, grupo de humor que publica seus vídeos no YouTube, lançou recentemente sua nova produção. Na esquete, um funcionário do novo regime político que se abateu sobre o país fiscaliza uma residência em busca de “fake news” e mensagens subversivas veiculadas em grupos privados de família. Depois de apresentado a uma longa lista de nomes e temas proibidos pela polícia de costumes, o cidadão fiscalizado finalmente recebe as mensagens que está autorizado a repassar de maneira imediata. São elas: “Bom dia, Janja”, “Boa noite, Bonner” e “Obrigado, STF”.
Diante da situação nacional contemporânea, é digna de nota a irreverência com que o grupo Hipócritas ousa continuar confrontando os autocratas do regime. Sobretudo porque os humoristas sabem perfeitamente bem que a piada contada pode virar uma sombria realidade já no dia seguinte. Isso, aliás, é o que já lhes aconteceu, quando, originalmente composto de três integrantes, o grupo foi reduzido a dois. Recorde-se que Bismark Fugazza, um dos idealizadores do canal, encontra-se preso por ordem de Alexandre de Moraes, acusado de “atentar contra a democracia”, numa das tantas prisões políticas que, forjadas sobre métodos tipicamente stalinistas, se tornaram habituais no Brasil de nossos dias.
Com efeito, o riso anda em baixa no país, ao menos desde quando o novo mandatário da República sancionou a Lei 14.532, de 11 de janeiro de 2023, sintomaticamente apelidada de “Lei Antipiada”, que equiparou injúria racial ao crime de racismo. Provando ter por alvo preferencial o livre exercício do humor, a lei determina especificamente que, se a prática do suposto racismo vier a ocorrer no contexto de atividades artísticas ou culturais destinadas ao público, o autor da piada criminosa deverá ser proibido de frequentar esses locais por três anos, numa condenação ao desterro e à condição de pária social.
Poucos meses depois de sancionada a excrescência autoritária, e os justiceiros sociais revolucionários encastelados no mundo jurídico não perderam tempo em agir. Foi o que acabou de acontecer com o comediante Léo Lins, obrigado por uma juíza de São Paulo, atendendo a um pedido do Ministério Público do Estado, a retirar do YouTube um especial de humor com mais de 3 milhões de visualizações. De acordo com o argumento da promotoria, o comediante estaria “reproduzindo discursos e posicionamentos que hoje são repudiados”.
Nota-se que a hipótese de que o público seja livre para decidir sobre esse eventual repúdio, ou sobre a função socialmente crítica do humor, já nem sequer passa pela cabeça dos jacobinos de toga brasileiros, autoproclamados fiscais da República da Virtude. O espírito das nossas instituições de Justiça é hoje inspirado pelo atual ministro da Justiça e Segurança Pública, o qual decretou extinto no Brasil o tempo da liberdade de expressão como valor absoluto. E, a bem da verdade, seria até estranho que um stalinista de quatro costados defendesse o contrário. Nada espanta aí. Quem falha irremediavelmente é o país que permite a presença de um bolchevique no comando da Justiça, definindo com base em seu projeto partidário de poder as leis e as normas às quais todos estarão sujeitos.
Mas, voltemos ao caso de Léo Lins. Segundo matéria de Oeste, a Justiça (ou aquilo que hoje se entende como tal) foi muito além de apenas censurar-lhe o conteúdo realizado. “Além de mandar apagar o vídeo do YouTube, a juíza também avançou sobre o conteúdo das piadas que Lins pode contar. Ela proibiu o humorista de publicar, transmitir e até mesmo de manter em seus dispositivos quaisquer arquivos ‘com conteúdo depreciativo ou humilhante em razão de raça, cor, etnia, religião, cultura, origem, procedência nacional ou regional, orientação sexual ou de gênero, condição de pessoa com deficiência ou idosa, crianças, adolescentes, mulheres, ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável’. A decisão também obriga Lins a retirar de todos os seus canais na internet qualquer piada que mencione esses grupos e o proíbe de citá-los em futuras apresentações de stand-up — a chamada censura prévia.”
Talvez muitos no Brasil ainda não tenham se dado conta do quanto avançamos, no intervalo de poucos anos, na direção dos mais paradigmáticos regimes totalitários dos últimos séculos. Sabe-se que a proibição do humor — ou, antes, a sua substituição por um humor permitido e reverente aos donos do poder — é a marca registrada das ditaduras. Sobre isso, aliás, reli faz poucos dias um livro magistral do historiador e economista Mark Harrison, intitulado Um Dia Viveremos Sem Medo: A Vida Cotidiana Sob o Estado Policial Soviético e publicado em 2016 pela Hoover Institution Press.
O autor foi um dos primeiros intelectuais do Ocidente com acesso aos arquivos oficiais soviéticos após o colapso da Cortina de Ferro, material que utilizou para analisar um período de quatro décadas de totalitarismo, com base no estudo de sete casos individuais de vítimas da polícia política. Ao longo do período considerado, mostra-se como, embora se sofisticando progressivamente, o Estado policial manteve fixas as suas linhas gerais de atuação. Partindo dos processos individuais tais como documentados nos arquivos, Harrison extrai os princípios básicos sobre os quais a polícia política operou durante sua história, da revolução bolchevique de 1917 ao colapso da União Soviética em 1991.
Dentre esses princípios destaca-se, justamente, aquele que o autor batiza de Pare o Riso. Harrison começa lembrando tratar-se de uma característica universal humana a necessidade de rir, entreter-se, esquecer os problemas e pôr as preocupações em perspectiva. Há, pois, uma demanda pelo riso, e os que o ofertam costumam ser recompensados segundo uma lei fundamental do mercado. Pelo mesmo motivo, o riso é essencialmente um fato social. Se faço uma piada e o outro ri, partilhamos imediatamente de algo íntimo, o nosso senso de humor. Sendo um fato social, é frequente que o humor assuma lados na sociedade. Portanto, ele não é neutro, e nem sempre é polido. Rimos com nossos amigos, mas rimos dos que nos prejudicam.
No que diz respeito à política, diz-se usualmente que um regime fica enfraquecido quando seu lado cômico ou ridículo é exposto. E George Orwell chegava a sugerir que “toda piada é uma pequena revolução”, o que, segundo minha própria formulação, explica por que os totalitarismos tenham tanto horror ao humor, obrigando-nos todos a tratar o ridículo com reverência. Para alguns, ainda, o humor é a arma dos que não têm armas. Seja como for, há uma perspectiva desde a qual esse debate teórico é irrelevante. E essa é a perspectiva da polícia política.
Todos precisam rir. Mas você não deve rir do sistema, do partido dirigente, de suas lideranças, de seus agentes policiais, e de todos os ofendidos que o regime pretenda alegadamente representar, e cujo protótipo vitimário é ele mesmo
Como explica Harrison, não importa tanto o fato de que dividir uma piada é algo como extravasar. O ponto essencial é que o humor funciona como um meio de troca, uma moeda: ele permite às pessoas compartilhar sentimentos. Não é a piada enquanto tal que se apresenta desconcertante. Do ponto de vista do Estado policial, o perigo está no público que ri em resposta a ela. Se conto uma piada e o outro ri, fala-me de algo que talvez eu não soubesse de antemão: que pensa como eu, que não estou sozinho.
Dito em outras palavras, se eu lhe conto uma piada, o perigo não está na piada, mas no compartilhamento. Divido algo com o outro, que divide sua resposta comigo, e o resultado é a formação de um laço ilícito, por assim dizer, uma rede clandestina de consumidores e fornecedores de humor. Essa rede não tem registro de membros, estrutura formal autorizada pelo partido ou foro especial no qual os membros partidários possam exercer liderança. Donde seu caráter suspeito, que exige investigação e, num segundo momento, repressão.
E assim é. Todos precisam rir. Mas você não deve rir do sistema, do partido dirigente, de suas lideranças, de seus agentes policiais, e de todos os ofendidos que o regime pretenda alegadamente representar, e cujo protótipo vitimário é ele mesmo. Essas piadas são a chama que aquece e reúne as pessoas. O público que ri das piadas é o símbolo de uma comunhão em torno de um coração coletivo que bate, e que por isso mesmo não deveria existir e muito menos ser tolerado. Eis por que, quando o Brasil rescende ao Estado policialesco soviético, a nova “Lei Antipiada” mira justamente os espaços de sociabilidade do humor. Redutos nos quais, imunes ao obsessivo moralismo político do regime, os indivíduos podem partilhar o dom do riso, tornando-se com isso mais e mais humanos, para o horror dos arquitetos da desumanização.
Leia também “As revoluções do transativismo”
Revista Oeste