Foto: Montagem/Shutterstock
Na Europa, países derrubam restrições e tratam a covid como uma doença comum. No Brasil, casos em queda e máscaras em alta
AInglaterra se tornou o país mais livre da Europa. Há algumas semanas, os ingleses experimentam a vida livres de máscaras, passaportes sanitários ou restrições de circulação. Até os contaminados pelo coronavírus foram dispensados de fazer isolamento social. O governo do primeiro-ministro, Boris Johnson, pôs em prática o plano “Viver com covid”, antecipando o desfecho dado como certo pela comunidade científica: a covid-19 se tornará uma endemia, ou seja, uma doença comum, como é a gripe. A decisão da Inglaterra é acompanhada por outros países que já entenderam, nessa altura do campeonato, que a apresentação de passaportes de vacina e lockdowns rigorosos são incapazes de conter o curso da doença. Com o mundo adentrando no terceiro ano da pandemia, algumas “verdades incontestáveis” simplesmente perderam a “validade científica”. Não dá para seguir em um embate permanente contra a doença, tratando a liberdade como sinônimo de morte e as restrições infinitas como corretas e saudáveis. Parte do planeta já despertou para a realidade.
Ao menos 20 países já anunciaram a flexibilização de regras no combate à pandemia. A Espanha, no mês passado, propôs classificar a covid-19 como uma doença endêmica. Coube ao primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, fazer o anúncio: “A ciência nos deu a resposta para que consigamos nos proteger”, afirmou Sánchez, em entrevista à rádio Cadena Ser. “Nós temos de começar a avaliar a evolução da covid-19 de uma pandemia para uma doença endêmica.” Desde 29 de janeiro, a Espanha voltou a permitir que as pessoas frequentem bares e restaurantes sem restrições. Nem a comprovação de vacinação é necessária.
A Suíça suspendeu a maioria das medidas restritivas contra a covid-19. O uso de máscaras e a apresentação do certificado de vacinação não serão mais exigidos para entrar em lojas, restaurantes, cinemas e teatros. Não há mais restrições para reuniões privadas nem a necessidade de obter licença para grandes eventos. A Dinamarca liberou geral e derrubou todas as proibições. “Estamos prontos para sair da sombra do coronavírus, nos despedimos das restrições e saudamos a vida que tínhamos antes”, disse a primeira-ministra, Mette Frederiksen.
A Polônia vai remover a maioria das restrições à covid-19 a partir de 1º de março. Na Itália, o uso de máscaras ao ar livre tornou-se facultativo. E Israel derrubou a exigência do passaporte sanitário. O primeiro-ministro, Naftali Bennett, justificou a medida afirmando que a onda de contágio da Ômicron está diminuindo rapidamente. O país, que já está na quarta dose de vacina, quer combater o coronavírus por meio da vacinação, sem “bloquear” a economia.
Combinação ideal para acelerar o fim da pandemia
Depois da chegada da Ômicron, a mais transmissível das variantes do coronavírus, a pandemia perdeu fôlego. No último dia 15, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou pela segunda vez neste ano queda no número de novos casos de covid-19 no mundo. As mortes pela doença estão reduzindo. É verdade que já vivemos outros períodos de trégua do vírus, seguidos de surtos ainda piores. Até agora, a doença já matou cerca de 6 milhões de pessoas no mundo e contaminou aproximadamente 430 milhões. Mas em nenhum momento, desde que a OMS decretou a pandemia, em março de 2020, o planeta reuniu três condições capazes de acelerar o fim de tragédias sanitárias causadas por vírus como agora: a vacinação em massa, um vírus menos letal em comparação com outras variantes e a grande quantidade de pessoas que se imunizaram naturalmente, por terem contraído a doença.
Assim como outros vírus respiratórios, o coronavírus provavelmente buscará o equilíbrio entre letalidade e sobrevivência. “O vírus só consegue se multiplicar se ele estiver dentro de um organismo vivo”, explica a infectologista Patrícia Rady Muller. “Não é a intenção do vírus sair matando todo mundo, senão ele não vai ter como se multiplicar e sobreviver.” Logo, variantes com alto poder de infecção se tornam dominantes, mas com baixa capacidade de provocar doenças graves e mortes. “A alta transmissibilidade faz com que a Ômicron circule com muita rapidez entre suscetíveis, infectando num curto período grande parte da população”, explica José Eduardo Levi, virologista e coordenador de pesquisa da Dasa, uma das maiores redes de saúde integrada do Brasil. “O que também leva à queda rápida pelo esgotamento de suscetíveis e torna a maior parte da população imune.” O médico Christopher Murray, especialista em métricas da saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, escreveu em artigo, publicado no mês passado, na revista científica The Lancet: “O nível de infecções sem precedentes sugere que mais da metade da população mundial terá sido contaminada pela Ômicron entre novembro de 2021 e março de 2022”.
Somado a isso, já foram aplicados mais de 10 bilhões de injeções anticovid no mundo. Apesar de as vacinas não serem 100% eficazes para evitar contaminações pelo coronavírus, estudos mostram que pessoas vacinadas, quando infectadas, têm menos chances de evoluir para casos graves e mortes. “Embora a Ômicron seja mais competente, tanto em escapar da resposta vacinal quanto da imunidade pós-infecção, já que a taxa de reinfecção por essa variante em quem já teve covid é alta, as vacinas têm evitado quadros mais graves também pela Ômicron”, disse Levi.
A pandemia no Brasil
No final do ano passado, o surgimento da Ômicron causou uma nova onda de pessimismo global. No Brasil, não foi diferente. As festas de réveillon foram canceladas, governantes recuaram em aliviar medidas como uso de máscaras, o trabalho remoto foi reativado e alguns gestores, como o governador de São de Paulo, João Doria, se apressaram em anunciar doses extras de vacinas para a população. Um novo déjà vu pandêmico se instalou no país. As manchetes voltaram a repercutir recordes de contaminações, alta nas internações hospitalares, a curva de mortes aumentou. De fato, a nova variante impactou o ritmo da crise sanitária no Brasil. Mas os números mostram que o solavanco provocado pela Ômicron, como antecipou reportagem da Revista Oeste, foi bem menos intenso quando comparado com outros períodos da pandemia, e está em desaceleração.
Cenário atual de casos e mortes por covid-19
No Brasil, assim como em outros países em que a Ômicron aterrissou, o número de casos de covid-19 explodiu. Em 3 de fevereiro, o país registrou recorde de infecções: quase 300 mil em um único dia. No entanto, a média móvel de casos, que elimina distorções entre dias úteis e fim de semana, ficou em pouco mais de 90 mil na última quinta-feira, 24, abaixo de 100 mil pela terceira vez desde 19 de janeiro. A redução da taxa ocorre desde 6 de fevereiro, o que também já começa a refletir na diminuição das mortes. O número total de contaminados pelo coronavírus é de pouco mais de 28,5 milhões de brasileiros até agora.
Enquanto boa parte do mundo se despede das restrições impostas por autoridades em razão do coronavírus, o Brasil resiste
Contudo, diferente do que se viu no início de 2021, o índice de mortes não aumentou na mesma proporção que os casos dispararam. A média móvel de mortes registrou queda pelo quarto dia consecutivo, chegando a quase 800, menor número desde 7 de fevereiro. No entanto, levando em consideração o pico da pandemia, em abril do ano passado, quando mais de 3,1 mil pessoas morreram em um único dia, houve redução de cerca de 75% das mortes, considerando a média móvel para sete dias.
A maquiagem das estatísticas
No período mais trágico da pandemia no Brasil, a ocupação de leitos de UTI destinados ao tratamento da covid-19 no Estado de São Paulo chegou perto de 90%, segundo dados da Seade, fundação vinculada à Secretaria de Governo do Estado. Em 7 de abril de 2021, havia cerca de 13 mil pacientes internados para pouco mais de 14 mil vagas.
Ainda no ano passado, quando a pandemia perdeu força, os hospitais reduziram a quantidade de leitos destinados exclusivamente para pacientes com covid-19. Por exemplo, no Estado de São Paulo, a disponibilidade de leitos de UTI covid caiu de 14 mil para menos de 5 mil (redução de quase três vezes). Nesta semana, em 24 de fevereiro, quase 2,5 mil pacientes ocupavam leitos de UTI covid. No entanto, o governo do Estado registrava lotação acima de 50%. Se a quantidade de UTIs destinadas à covid-19 fosse a mesma de 7 de abril de 2021, a ocupação atual não chegaria a 20%.
Considerando as mais de 14 mil vagas de UTI reservadas em abril do ano passado para pacientes com covid-19, mesmo em 3 de fevereiro — momento de maior pressão no sistema de saúde depois do surgimento da Ômicron até agora —, a lotação teria ficado abaixo de 30%.
Na vanguarda do atraso
Enquanto boa parte do mundo se despede das restrições impostas por autoridades em razão do coronavírus, o Brasil resiste. Por aqui, os gestores não dispensaram o acessório mais simbólico desta pandemia: as máscaras. Elas continuam por toda parte. São usadas ao ar livre, em alguns casos até dentro de piscinas. Máscaras (às vezes duas) cobrem o rosto em academias, parques, na chegada de restaurantes e festas (sentado pode tirar). O uso do equipamento, mais do que evitar a contaminação pelo coronavírus, virou gesto político e ato de resistência. Nesta semana, o Fórum Nacional de Governadores se reuniu para avaliar a flexibilização do uso de máscaras no país a partir de março. O grupo pediu uma análise ao comitê científico para formular um cronograma de transição de medidas restritivas relacionadas à covid.
Outro ponto em que o Brasil patina em relação às nações desenvolvidas é o debate transparente sobre a vacinação infantil. Embora o Ministério da Saúde tenha deixado claro que a vacinação de crianças não é obrigatória, os Estados têm obrigado indiretamente a imunização de menores de 12 anos, sob ameaça de denunciar os pais que optarem por não imunizar seus filhos ao Conselho Tutelar. Para completar o combo do atraso, ainda discutimos a imposição do passaporte sanitário, quando países da Europa já entenderam que a vacinação não impede a transmissão e quem opta por não se vacinar não representa um risco para a humanidade. O retorno à vida como era antes está mais perto do que nunca. O Brasil não pode ficar para trás.
Leia também “As inúmeras contradições da pandemia”
Revista Oeste