terça-feira, 18 de agosto de 2020

Os moradores de rua e a metrópole abandonada - São Paulo é o retrato da inépcia das políticas públicas em relação aos sem-teto


Os passeios a pé pela Avenida Paulista, um dos principais marcos financeiros e turísticos da cidade de São Paulo, já foram bem mais prazerosos. A avenida, que foi endereço de barões do café e abrigou belos casarões centenários, reflete hoje o nível de degradação que a maior cidade do país vivencia. As calçadas estão tomadas por barracas de camping empoleiradas. Em algumas transversais da Paulista, foram montadas tendas com lonas, caixilhos e acúmulo de lixo empilhado. Pessoas dormem em plena luz do dia estateladas no chão. Cobertores e trapos são largados ao relento. 

Restos de alimento são deixados pelo caminho. Carrinhos de supermercado e carroças com entulho acumulam-se pelas vias. Em determinados trechos, o cheiro de urina e fezes é tão forte que causa náusea aos passantes. A situação da avenida mais famosa do Brasil é degradante e escancara um dos maiores desafios da administração pública municipal, principalmente nas grandes cidades: a população de rua.

Segundo o censo realizado em 2019 pela prefeitura de São Paulo, a população de rua na cidade saltou de 15.905, em 2015, para 24.344 em 2019 — um aumento de 53%. Com a pandemia do coronavírus, o rígido isolamento social imposto pelo governo municipal provocou a desertificação das ruas, dando a impressão de que esse número é muito maior. Mas não só. 

Dados da prefeitura dão conta de que os bairros centrais concentram a maioria dos chamados do Disque 156 relacionados a moradores de rua. Ou seja, por mais que eles representem apenas 0,2% da população de São Paulo, quem vive nas regiões centrais da cidade tem a sensação de que essas pessoas estão por toda parte. E, de fato, estão.

A capital paulista dispõe de 134 serviços específicos para os moradores de rua. Destes, 89 são voltados ao acolhimento, com 17,2 mil vagas, número insuficiente para abrigar todos os necessitados. Além disso, os albergues funcionam apenas como dormitórios. Nas primeiras horas da manhã, os “hóspedes temporários” são obrigados a deixar o local e, como não têm para onde ir, as ruas se tornam o destino da perambulação. 

A justificativa política e a ocupação de espaços públicos


A sensação de abandono da cidade é tema sensível há algum tempo. “Na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad [do PT, entre 2013 e 2016], a cultura do acolhimento deu espaço para a cultura de aceitar que as pessoas ficassem nas ruas, com a ideia de que ‘elas têm direito de escolher onde morar’”, lamenta o empresário Filipe Sabará, ex-secretário municipal de Desenvolvimento Social da capital paulista. “Quando se faz isso, você deixa as pessoas numa ‘zona de conforto’. Elas não saem daquela situação porque nem acreditam que podem sair mais.”

O prefeito Bruno Covas (PDSB), que herdou o cargo do atual governador do Estado de São Paulo, João Doria (PSDB), parece seguir a mesma cartilha do petista Haddad. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Covas disse que a prefeitura não pode obrigar moradores de rua a sair das vias públicas. “A população cobra da gente respeito aos direitos humanos e também cobra que a gente suma com os moradores de rua. Há uma zona intermediária em que a gente pode resolver essa situação, mas garantindo os mesmos direitos que eu, você e a nossa família temos. É preciso um trabalho de convencimento”, diz.

Enquanto o trabalho de convencimento parece ficar só na esfera do discurso, milhares de moradores de rua ocupam espaços públicos diante da paralisia do Estado. Para o desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) Ivan Sartori, a solução não é simples. Mas o jurista alerta para o papel da gestão pública na defesa dos direitos de todos os cidadãos. Para ele, os locais públicos não podem ser tomados para uso particular. “O poder público não pode ser condescendente e deixar que os equipamentos públicos se deteriorem. Existe ainda a questão da perda de segurança e do bem-estar do cidadão.”

Não se trata de higienismo ou de “sumir” com a população vulnerável, como insinua Covas. A fala do atual prefeito, no estilo “a melhor defesa é o ataque”, tenta transferir o ônus da responsabilidade para o cidadão que paga, arduamente, seus impostos. 

A construção de um discurso em que uma elite quer “a limpeza pública” e o “saneamento moral” da cidade serve como cortina de fumaça para encobrir a incompetência da gestão pública em relação ao problema. 

Afinal, estamos diante de uma cidade com R$ 69 bilhões de receita anual. É o terceiro orçamento do país, depois dos orçamentos da União e do Estado paulista.

Nem mesmo em Paris, na França, a prefeita Anne Hidalgo, do Partido Socialista, permite que moradores de rua tomem as calçadas da Avenida Champs-Élysées ou as praças do Quartier Latin para usá-las como dormitório ao ar livre. Os cerca de 3.500 moradores de rua da cidade são recebidos nas 6.400 vagas disponíveis em albergues. 

Não se pode “cancelar” madame Hidalgo por ações higienistas. Sua administração concedeu ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva o título de cidadão parisiense e deu a um jardim suspenso perto da Gare de l’Est o nome de Jardin Marielle Franco.

O assistencialismo que estimula a vida nas ruas

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A ajuda humanitária aos cidadãos que vivem nas ruas de todo o país não se esgota com a ação institucional do Estado. São muitos os grupos de voluntários que trabalham para dar comida, cobertores e não raro suporte moral aos desalentados. De fato, iniciativas privadas costumam ser mais eficientes e são importantes para suprir a nulidade das políticas públicas. Entretanto, o assistencialismo pode reforçar uma cultura paternalista de que o morador de rua não é digno de conquistar nada e que deve continuar sobrevivendo com a ajuda de terceiros, sem fazer esforço algum.

Essa é a tese que o pastor batista e professor de teologia e economia Yago Martins defende em seu livro A Máfia dos Mendigos — Como a Caridade Aumenta a Miséria (Editora Record, 2019). Martins resolveu passar um ano vivendo entre mendigos para entender em primeira mão a realidade dos miseráveis. Três vezes por semana ele dormia ao relento nas ruas de Fortaleza, no Ceará.

O experimento social com a extrema pobreza resultou em algumas descobertas. Para Martins, existe uma verdadeira indústria da miséria e boa parte da população de rua está lá porque quer. Graças a voluntários, entidades filantrópicas e igrejas, não falta comida nem agasalho. O pastor conta que, em certos locais, as opções são tão variadas que é possível escolher o cardápio. Tem o dia do sopão católico, da janta evangélica, do cachorro-quente espírita. 

“Quando algum grupo distribui marmitas variadas, os espertos dispensam a primeira, porque gostam mais da segunda.” Martins teve contato com crianças alugadas para pedir esmola. Conheceu até um rapaz que chegava de Honda Civic, estacionava longe e ia ganhar seus trocados como flanelinha. “Sem contar nenhuma história triste, dá para tirar um salário mínimo por mês. Com um bom drama, até o dobro.”

Embora a vida dessas pessoas seja sofrida e por vezes perigosa, sempre haverá quem prefira as ruas. Martins chama de “parasitas da miséria” os que se aproveitam da caridade mesmo sem precisar dela. 

São pessoas que têm casa para voltar, são intelectualmente capazes e apresentam condições físicas e psicológicas para o trabalho. Segundo dados do último censo, 85% da população de rua é formada por homens, e quase 50% com idade entre 31 e 49 anos. 

“Seguem na rua porque preferem não se comprometer com uma rotina que, naturalmente, envolve sacrifícios”, afirma.

Mas, longe de idealizar a vida nas ruas, o pastor ressalta que a falta material não é tão dolorosa quanto a falta de propósito que angustia essa população. A ausência de perspectiva e o sentimento de não ser alguém anestesiam quem poderia estar trabalhando e produzindo. A vida nas ruas despersonaliza o indivíduo. 

Em razão disso, Martins acredita que a filantropia serve mais para aliviar a consciência de quem acredita ter o dever de retribuir à sociedade a vida confortável que tem do que, de fato, produzir alguma transformação efetiva. 

“A impressão que dá é que o mendigo muitas vezes é instrumento de entretenimento moral. É só um jeito de a pessoa se sentir melhor, fazer uma coisa boa e voltar pra casa feliz.” 

Para o pastor, o melhor recurso humano que se pode doar é o tempo. 

“Depois dessa experiência, passei a defender que a caridade útil requer que se sente no chão com o necessitado para entender de que, exatamente, ele precisa.”

A complexidade da situação dos moradores de rua demanda medidas permanentes da municipalidade. É preciso entender que a questão não é homogênea. Cada pessoa tem uma história e está na rua por diferentes motivos — seja porque perdeu o emprego, porque foi abandonado pela família ou porque tem problemas com drogas ou distúrbios mentais. 

Ações integradas precisam envolver psicólogos, assistentes sociais, o próprio Judiciário, a promotoria local, além da iniciativa privada. A oferta de mais albergues que possam abrigar toda a população vulnerável da cidade também é um caminho. 

Mas existe um fator primordial nessa equação: vontade política. Infelizmente, a miséria pode, sim, ser um bom negócio para muita gente, pois dela é possível extrair recursos financeiros e dividendos políticos. Na ponta, os recursos dos pagadores de impostos continuam a chegar aos miseráveis na forma de esmolas.

, Revista Oeste