sexta-feira, 28 de agosto de 2020

"O ministro Vitalzinho e a corrupção contratada", por J.R. Guzzo

 É impossível viver sem corrupção se os partidos políticos mandam no TCU, que vai fiscalizar as despesas feitas por eles mesmos


Ocaso do ministro Vital do Rêgo Filho, do Tribunal de Contas da União, vale por um curso completo sobre a destruição do Estado brasileiro, por obra do roubo ao Erário, que o sistema político e as leis em vigor nos últimos trinta anos tornaram inevitável, permanente e insolúvel. 

É o que se poderia chamar de “corrupção contratada”. 

Os magnatas que vivem nos galhos mais altos da árvore onde se abriga a máquina pública nacional vão roubar, quaisquer que sejam as condições de temperatura e pressão — é assim que está estabelecido no tipo de contrato vigente entre os homens públicos e o Brasil, e suas cláusulas têm de ser cumpridas à risca, o tempo todo. 

A população, naturalmente, não assinou nada: recebeu o pacote pronto e acabado da Constituição Cidadã de 1988, teve de aceitar o que está escrito ali “por adesão”, como se diz, e cumpre o seu dever contratual metendo a mão no próprio bolso para pagar a festa sem interrupção dos que se tornaram proprietários do Estado por força de lei.

Esse Vital é um espécime clássico dessa gente — e a sua história, como mencionado no início, é uma demonstração de manual a respeito de como a administração pública está condenada a funcionar neste país. 

Vital, ou “Vitalzinho”, ex-senador da Paraíba, acaba de ser acusado, em inquérito do Ministério Público, de ter recebido R$ 3 milhões da empreiteira de obras OAS, em 2014, para trabalhar em seu favor numa CPI que então investigava a roubalheira desesperada na Petrobras — que depois se transformaria no “Petrolão”. 

Mais: segundo a denúncia, pediu que a OAS o apresentasse às empreiteiras Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Engevix, UTC, Toyo Setal — e, é claro, à incomparável Odebrecht — porque queria receber mais R$ 5 milhões de cada uma, em pagamento pelos mesmos serviços que prestou na CPI. 

Até uma criança de 10 anos sabe como funciona: você monta uma investigação no Congresso para apurar corrupção num órgão público qualquer, e aí extorque os ladrões para fazer com que a CPI não dê em nada. 

Elas nunca dão.

“Vitalzinho” é acusado pelo MP de ter feito o seu trabalho a partir de abril de 2016; em dezembro desse mesmo ano, foi nomeado — que surpresa — pela presidente Dilma Rousseff para o TCU. 

Não porque entendesse alguma coisa de contas públicas; foi nomeado unicamente por ser do MDB da Paraíba. 

Pelas leis, regimentos, usos e costumes da vida pública brasileira, os partidos políticos têm o direito de nomear a maior “cota” de ministros do TCU. 

É isso mesmo: os políticos são os que fiscalizam as contas dos governos, e os governos são formados exatamente pelos próprios políticos. 

É uma das mais espetaculares hipocrisias da democracia brasileira pós-88, essa mesma cuja “defesa” provoca chiliques diários em ministros do STF, na mídia liberal e nas classes civilizadas. 

No papel, o que pode haver de mais lindo do que entregar aos representantes do povo a fiscalização das despesas do Estado? 

Na prática, o que se tem é o “Vitalzinho”.


O que temos no Tribunal de Contas é o padrão “Vitalzinho” de qualidade

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É impossível viver sem corrupção na máquina estatal se os partidos, entre tantos outros delírios, mandam no organismo que vai fiscalizar as despesas feitas por eles mesmos; é como chamar traficantes de drogas para julgar casos de tráfico. 

É óbvio que esse trabalho deveria ser feito por profissionais de contabilidade independentes, tecnicamente capazes e politicamente neutros. (Imaginem, só para imaginar, como seriam as coisas se o trabalho do TCU fosse feito por uma grande empresa internacional de auditoria, contratada em concorrência pública: você acha que o controle das contas do governo seria mais honesto, ou menos? 

Seria mais bem-feito, ou ficaria pior do que é? Pano extremamente rápido, como no “Teatro Corisco” de Millôr Fernandes.) 

Mas afastar os políticos desse pernil que há décadas garante a ladroagem maciça contra a população brasileira, e organizar um sistema racional de fiscalização das contas públicas, é atentar “contra a democracia”, a “ordem constitucional” e o “Estado de Direito”. 

É fascismo. 

Tudo bem: para combater a extrema direita, então, deixe-se tudo como está — e fica garantido, oficialmente, que o Brasil continuará a ser roubado pelos que mandam no aparelho estatal.

“Vitalzinho”, como está escrito no inquérito, foi acusado de receber os seus milhões enquanto era senador, e não como ministro do TCU. 

E que raio de diferença faz isso? 

Os políticos chegam ao tribunal carregando cada um o próprio passado, intacto; não é que ao ser nomeados façam um mergulho no Rio Jordão para receber o batismo e que as suas vidas anteriores sejam anuladas. 

O TCU é conjunto dos seus ministros, exatamente como eles são. 

No Brasil das “instituições democráticas” atualmente em vigor, o que temos no Tribunal de Contas é o padrão “Vitalzinho” de qualidade. 

Da mesma forma, seria uma ilusão jogar na presidente Dilma a culpa por essa história miserável; ela é responsável por ter assinado o decreto que nomeou o homem, claro, mas possivelmente nem sabia o que estava fazendo. 

Quem tem de responder por isso é o Senado da República. 

De um total de 65 votos (os demais senadores estavam ausentes da sessão), “Vitalzinho” foi aprovado por 63, contra uma abstenção e um único voto contrário — só um, não mais que um. 

Com um pouquinho mais de esforço, seria unanimidade. Não há nenhuma justificativa para esse ato de demência; é assim mesmo que as coisas funcionam no Brasil. 

O Senado brasileiro é puro “Vitalzinho”, e os dois juntos são o Tribunal de Contas da União.


Ninguém tem culpa de nada e todos podem ir celebrar o precioso espetáculo das “instituições em funcionamento”


As investigações que levaram à denúncia do Ministério Público, no âmbito da Operação Lava Jato, têm uma riqueza chocante de detalhes. 

Que cérebro conseguiria inventar os episódios narrados no inquérito? 

O autor das denúncias é o célebre Leo Pinheiro, grão-senhor da OAS no tempo da ladroagem maciça — aquele mesmo Leo Pinheiro cujo depoimento, validado por todos os juízes que apreciaram o caso, levou o ex-presidente Lula à cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no processo do “Tríplex do Guarujá”. 

As propinas eram pagas pela “Controladoria” da OAS, nome que a empresa dava à sua área de corrupção, como o “Departamento de Operações Estruturadas” que imortalizou a Odebrecht. 

A denúncia relaciona um funcionário do TCU, empregado no próprio gabinete de “Vitalzinho”, entre as pessoas que receberam as propinas da OAS, em dinheiro vivo. 

Foram usados contratos fictícios com a “Construtora Planície”, transações com a “Casa Lotérica Tambaú” e outros truques básicos do Guia Brasileiro da Corrupção para fazer os pagamentos. 

Houve, segundo a acusação, entrega de dinheiro num shopping center do Recife, no aeroclube de João Pessoa e num restaurante de beira de estrada entre as cidades de Goiana, em Pernambuco, e Bezerros, na Paraíba.

A tudo isso o ministro responde como dez entre dez acusados que se veem no mesmo tipo de rolo: manifestou a sua “estranheza”. 

Não precisará, provavelmente, fazer muito mais do que isso para se defender. 

Além de achar estranho, diz que as denúncias são “velhas”; no entender clássico dos advogados em processos de corrupção, fatos devem ser anulados por decurso de prazo, como um pacote de sabão em pó cuja validade venceu. 

A Justiça está demorando a decidir, por que os réus, justamente, se valem da lei para impedir que ela decida? 

Então zera tudo. 

Ninguém tem culpa de nada e todos podem ir celebrar o precioso espetáculo das “instituições em funcionamento”. 

Em último caso, para “Vitalzinho”, sempre há o infalível Supremo Tribunal Federal. 

Para garantir a coisa toda pelos sete lados, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski estão desenvolvendo com sucesso uma vacina chamada “parcialidade do juiz”. 

Caso alguém seja condenado, basta ir ao STF e dizer que o juiz foi parcial — o sujeito sai livre no ato, mesmo que a condenação tenha sido assinada por nove magistrados, o da primeira instância e os outros oito, dos tribunais superiores a ele, que confirmaram a correção da sentença inicial. 

Em suma: a possibilidade de alguém ser punido por ladroagem é praticamente nula no Brasil de 2020.

O sistema foi legalmente montado com o objetivo de promover a prática da corrupção e de garantir a sua impunidade. 

Não pode funcionar de outro jeito.

Revista Oeste