sexta-feira, 24 de julho de 2020

"O sumiço da vergonha na cara", por Augusto Nunes

Mulheres de políticos viraram comparsas do maridão

Não combina com a cara de faraó, pensei enquanto olhava de soslaio o chapéu de palha que Ulysses Guimarães, ressonando à minha esquerda no banco traseiro do Opala, tinha sobre a cabeça desde o fim da tarde daquele sábado de setembro. Ganhara o chapéu em Itaquaquecetuba, procissão de vogais e consoantes estacionada na Grande São Paulo que hospedara o quinto comício do dia. Cinco horas e dois palanques depois, o presente do eleitor anônimo continuava cobrindo a calva do deputado que comandava o PMDB em mais uma campanha eleitoral, dessa vez promovida para eleger novos prefeitos e vereadores.
Será que ele esqueceu que está com o chapéu?, desconfiei. “Presente de eleitor é coisa séria, por mais barato que seja”, disse Ulysses sem abrir os olhos. Espantou-me o aparte mediúnico. Como é que ele descobriu o que eu estava pensando?, estranhei ao ouvir a voz grave e rouca de cantor de cabaré. Aos 60 anos, Ulysses cumpria o sétimo mandato na Câmara dos Deputados (e seria reeleito outras quatro vezes). Os jornalistas diziam que aquele astucioso paulista de Rio Claro fazia coisas de que até Deus duvida. 
Mas nunca imaginei que era capaz até de ler pensamento.
“O problema do político é a mulher do político”, mudou de assunto meu companheiro de viagem, descerrando os olhos tão azuis quanto céu de brigadeiro e ajeitando no banco o corpo longilíneo. “O sujeito entra em casa no escuro, tira o sapato sem fazer qualquer ruído mas não adianta”, continua Ulysses. “Uma mulher sonolenta vai querer saber como foi o dia. O sujeito então conta que almoçou com fulano ou encontrou beltrano e lá vem aquele tipo de comentário: ‘Sei, aquele que você diz que é cafajeste’; ‘sim, esse que vive dizendo que você não presta’. Elas têm uma memória tremenda. Guardam tudo o que ouvem sobre todos, do vereador de distrito ao presidente da República”.
Nem todas as parcerias são autorizadas pelo jogo do poder

Era difícil imaginar Mora Guimarães formulando cobranças noturnas daquele gênero. Primeiro, porque a lacônica e risonha mulher de Ulysses preferia dizer o que estava pensando com movimentos faciais. Depois, porque seu marido sempre teve vergonha na cara. “Não existe nada mais afrodisíaco que o poder”, repetia, “mas jamais venderia a alma para consegui-lo.” Era um homem honrado. E continuaria a sê-lo até 12 de outubro de 1992, quando desapareceu no litoral de Angra dos Reis depois da queda do helicóptero em que viajava com Mora e os amigos Severo e Henriqueta Gomes. Ele tornou famosa a frase “Navegar é preciso”. O bravo marinheiro só poderia morrer no mar.
Como a linhagem a que Ulysses pertenceu, são coisa do século passado mulheres aferradas a valores éticos ou morais, decididas a impedir que a vida política não deformasse o caráter do homem com quem se haviam casado. Em Taquaritinga, Dona Biloca não frequentava comícios, não se metia em questões políticas, desdenhava da expressão “primeira-dama” e, houvesse ou não uma campanha em andamento, seguia concentrada na vida de professora primária mãe de cinco filhos. Mas nunca deixou de lembrar ao marido que o status de prefeito não pode revogar o sentimento da honra. Que nem todos os insultos podem ser anestesiados. E que nem todas as parcerias são autorizadas pelo jogo do poder.
(Um dia, a caminho de uma entrevista com Fernando Henrique Cardoso em Brasília, perguntei-lhe se gostaria de mandar algum recado ao presidente da República. Já septuagenária, ela ingressara no magistério público com menos de 20 anos e se aposentara com pouco mais de quarenta. Dias antes, FHC qualificara de “vagabundo” quem abandona o trabalho regular aos 50. “Diga-lhe que me envergonho por ter ficado mais tempo sem dar aulas do que fiquei lecionando”, disse a professora Emilia Menon Nunes da Silva.)
Imaginem o que escondem ex-jornalistas que se uniram a senadores larápios, negociantes bilionários e chefões do Congresso

Duas restrições sempre tiveram força de lei nos embates eleitorais em Taquaritinga, por mais ferozes que fossem. A primeira poupava mulheres de candidatos do tiroteio retórico. A segunda estabelecia que qualificar um adversário de “ladrão”, acusação gravíssima, exigia o amparo de provas robustas. A cidade com menos de 100 anos e pouco mais de 10 mil habitantes carregava a fama de terra de ladrão de cavalo e, com alguma frequência, abalava-se com crimes passionais protagonizados por integrantes da elite. Nada disso parecia mais chocante do que um desfalque consumado pelo gerente de um banco, ou pela fuga de um vereador que sumira no meio da noite pela impossibilidade de honrar dívidas de bom tamanho. O estigma abrangia a família inteira e se estendia às gerações futuras. Quem driblava a cadeia tinha de refugiar-se em casa até a chegada do caminhão de mudança. O anátema parecia mais doloroso que a prisão.
A mulher de político que assombrava a geração de Ulysses não existe mais. No Brasil do século 21, quem se casa com um pai da pátria deve preparar-se para ouvir no primeiro jantar que só é feio perder a eleição — e perder o poder é pecado mortal. Para que tal não aconteça, vale tudo, até vender a mãe a preços de liquidação, ou tungar a poupança da avó. A certidão de casamento transforma noiva em comparsa, e comparsa não faz perguntas constrangedoras. Imaginem o que escondem ex-jornalistas que se uniram a senadores larápios, negociantes bilionários amamentados pelo BNDES, chefões do Congresso e outras obscenidades com imunidade parlamentar. Ou que enriqueceram em ritmo de F-1 com fantasias obscenas disfarçadas de marketing eleitoral.
O grande Nelson Rodrigues amava descrever em suas crônicas os efeitos desencadeados nas ruas do velho Rio pelo grito que anunciava a chegada da polícia: “Olha o rapa!”. Imediatamente, saíam em desabalada carreira culpados ou inocentes, adultos ou bebês de colo, camelôs e fregueses. Hoje, é provável que um berro de “Pega Ladrão” nas imediações de uma manifestação do PT acabe com os homens da lei acuados. No faroeste à brasileira inventado por Lula e seus devotos, é o bandido que persegue o xerife.
Lula nasceu, cresceu e morrerá sem saber o que é vergonha na cara

Em que momento terão os incontáveis prontuários ambulantes que infestam o Brasil perdido a vergonha de vez? É possível localizar alguns avanços históricos. Em 2005, por exemplo, quando foi escancarado o esquema montado para comprar, alugar ou arrendar parlamentares, o presidente Lula deu um atrevido passo à frente: \
“O Mensalão não existiu”, garantiu o chefão da quadrilha. 
Desmontado o balcão de compra e venda de votos, o partido que virou bando arquitetou o loteamento de ministérios. Em vez de mesadas, os partidos da base aliada ganhavam pedaços do primeiro escalão, cofres incluídos. No julgamento do Mensalão, o Supremo Tribunal Federal fingiu não enxergar direito nem a roubalheira antiga nem a ladroagem modernizada.
“Precisamos reagir a essa luta moralista contra a corrupção”, animou-se José Dirceu. “Nesse momento, o que nossos inimigos pretendem, a pretexto de combater a corrupção, é destruir o governo.” O entusiasmo contagiou Delúbio Soares: “Vou falar em alto e bom som”, avisou o gerente do Mensalão. “Não me arrependo de nada. Parei de passear, de fazer as coisas, mas valeu muito e está valendo.” 
O notável desempenho da Operação Lava Jato desmontou o maior esquema corrupto da história e apavorou os poderosos patifes. Até que as investigações se aproximaram perigosamente do Legislativo e do Judiciário. Como ensinou Romero Jucá, chegara a hora de “estancar a sangria”.
O discurso em que Lula se declarou pela primeira vez “preso político” — o único do mundo engaiolado por ladroagem e lavagem de dinheiro — poderia ser um bom momento para oficializar a revogação do sentimento de vergonha na cara. O problema é que Lula nasceu, cresceu e morrerá sem saber o que é isso.

Revista Oeste