“Desconectado da realidade brasileira”, resumiu à Revista Oeste o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ao falar sobre o Itamaraty que encontrou ao assumir a pasta no ano passado. Gaúcho de Porto Alegre, Araújo, de 53 anos, passou mais da metade de sua vida no Itamaraty. Trabalha na entidade há 29 anos e convive com diplomatas não apenas na esfera institucional, mas também socialmente. Ele diz que predominava entre os colegas de carreira uma leitura superficial das tradições diplomáticas — como, por exemplo, a ideia de que o Brasil perderia ao se relacionar com determinados países. Isso impediu a aproximação com Israel e Estados Unidos. Em contrapartida, privilegiou-se o relacionamento com países árabes e a China.
“Essa percepção mudou”, garante. “É possível promover uma relação produtiva com todos os lados.” O ministro também discorreu acerca da reorganização que fez na pasta para, segundo ele, torná-la enxuta e eficiente. Também avaliou o papel da Organização Mundial da Saúde durante a pandemia, destacou as ações do ministério contra o coronavírus, comentou a cooperação Brasil-Argentina e tratou do complicado tema da mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém.
Araújo falou ainda de uma ação pouco conhecida por boa parte da sociedade, a repatriação de cidadãos que enfrentam situações adversas fora do país. São brasileiros que não conseguiram voltar em razão das medidas restritivas de isolamento social adotadas por governos locais, cancelamento de passagens aéreas por causa do fechamento de fronteiras — como na Austrália — ou dificuldades financeiras para sobreviver sem emprego, já que muitos bares e restaurantes fecharam no mundo todo.
Eis os principais trechos da entrevista.
Como o senhor encontrou o Itamaraty ao assumir o cargo, em 2019?
Assumimos um ministério com muitas secretarias, subsecretarias e departamentos tratando de vários temas, às vezes sob responsabilidade de uma única pessoa. Isso não nos pareceu bom do ponto de vista administrativo. Eram nove secretarias e reduzimos para sete. Também realocamos funcionários [são 1.500 diplomatas] para outros setores. Tínhamos dois departamentos que tratavam de América do Sul, ambos com várias subdivisões. Hoje temos um, para tratar de todos os países do continente. Onde foi necessário, desfragmentamos. Estávamos concentrados na exportação de bens industriais, por exemplo. Porém, precisávamos de um departamento para agronegócio. Nesse caso, criamos uma área específica com esse propósito. De modo geral, estamos conseguindo fazer mais com menos.
O que mudou na gestão dos recursos públicos neste momento de crise?
No ano passado, com tudo funcionando e viagens ocorrendo normalmente, conseguimos cortar cerca de R$ 100 milhões ao fechar embaixadas onde não era necessário e trazer funcionários do exterior para Brasília [em junho de 2019, o ministério fechou cinco embaixadas no Caribe e duas na África]. Queremos ter mais gente aqui e menos no exterior. Manter um funcionário fora é custoso. Portanto, procuramos racionalizar. Neste ano, apesar da pandemia, recebemos uma dotação orçamentária que permitiu fazer voos de repatriação, fretamento de aviões e veículos terrestres.
Como opera o gabinete especializado em ações de repatriação?
Temos cerca de 400 pessoas trabalhando exclusivamente nesse tema — tanto em Brasília como ao redor do mundo. Criamos a central aqui, mas estamos em contato permanente com nossas embaixadas. Em síntese, o trabalho é descobrir onde estão os brasileiros que precisam ser repatriados e prover os recursos para trazê-los. Além de sites oficiais na internet, ampliamos nossa presença nas redes sociais, que foram importantíssimas para que essa operação desse certo. Desde 28 de março, 38 mil brasileiros já retornaram.
“A aproximação com os EUA era vista como risco de perda de soberania”
O presidente Donald Trump tem sido um importante aliado do Brasil, mas os Estados Unidos estão em ano eleitoral e o cenário pode mudar. Já há alguma aproximação do governo brasileiro com o candidato democrata, Joe Biden?
O Brasil se relaciona com o governo que está no poder. Se ocorrer uma mudança de partido, vamos passar a trabalhar a partir das prioridades deles e das nossas. Tudo o que estamos fazendo não é com Trump, mas sim com os Estados Unidos. Acreditamos que, se houver uma mudança lá, os projetos em andamento continuam. A atitude do Brasil mudou em relação aos Estados Unidos. No passado, por exemplo, mesmo quando havia um presidente de esquerda no Brasil e um democrata lá, as coisas não avançavam, porque vigorava um pensamento muito arraigado no Brasil de não fazer negócios com os norte-americanos. Qualquer medida nesse sentido era sinônimo de “perder soberania”. Na verdade, perdemos muitas oportunidades ao longo de décadas.
Que oportunidades serão aproveitadas agora?
O governo brasileiro está estudando projetos na área de ciência e tecnologia. A área de defesa também é um terreno propício para investimentos. Nós nos tornamos aliados extra-Otan e, portanto, isso abre muitas portas para a indústria da defesa brasileira, que está entusiasmada.
E com a China, o relacionamento é amigável?
Sem sombra de dúvida. Além disso, temos um pacto comercial excelente. Insisto em dizer que é uma relação madura. Há uma série de cooperações. Nossa relação é produtiva na área tecnológica, de investimentos e no setor alimentício.
“O acordo com a UE trará benefícios também para as empresas europeias com atuação no Mercosul”
Têm avançado as negociações do acordo entre Mercosul e União Europeia?
Estamos bem avançados na parte jurídica, que deve ficar pronta ainda neste semestre. Queremos que o acordo seja aprovado quanto antes [é preciso que todos os países-membros dos dois blocos assinem]. A Alemanha, que está na presidência da União Europeia, tem muito interesse. Vamos aproveitar isso para ver se conseguimos agilizar as coisas. Vários pontos nos deixam otimistas. É interesse dos europeus, embora haja a impressão de que apenas o Mercosul vai ganhar. A aprovação beneficia empresas europeias que têm investimentos no Brasil, na Argentina e no Uruguai. Sobre a questão ambiental, existe a narrativa em parte da Europa de que o acordo aumentará o desmatamento aqui. Isso não é verdade. Ele também consolida compromissos que o Brasil terá de assumir nessa área.
Os ventos mudaram radicalmente de direção na Argentina. Há possibilidade de uma aproximação com o governo Fernández-Kirchner?
Antes de mais nada, temos uma sociedade com a Argentina dentro do Mercosul que é fundamental. Para nós, o bloco não é simplesmente um nome. Tem de ser um instrumento eficiente de integração na economia mundial. Até o momento, o governo argentino tem tido uma atitude construtiva, ao não sair das negociações em andamento, e isso é favorável. Tínhamos a preocupação de a nova gestão voltar a criar barreiras dentro do Mercosul, como fizeram os Kirchner. No entanto, isso não ocorreu. Estamos prontos para continuar negociando bilateralmente com os argentinos. Em três ocasiões, o presidente Bolsonaro garantiu que está à disposição para se encontrar com Alberto Fernández. Mas esperamos também que a Argentina mantenha o compromisso com a democracia.
Aventou-se, durante a campanha eleitoral, a possibilidade de transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. A medida ainda está no radar?
Está. Continuamos estudando isso. Já tivemos conversas com alguns países da região. Para nós, é importante que, na hipótese de fazermos a mudança, isso não seja interpretado como um gesto abrupto.
“Há uma relação especial entre o Brasil e a Índia. Temos visões de mundo muito próximas”
Quais as prioridades relacionadas à pandemia de coronavírus?
De modo geral: saúde e emprego. No Itamaraty, procuramos espelhar isso, de modo a facilitar a cooperação internacional em várias dimensões: obtenção de vacinas, equipamentos de proteção individual e capacitação de pessoas — tudo em conjunto com outros ministérios. Na parte econômica, mais do que nunca precisamos do comércio exterior. Redobramos os esforços da Apex [Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos], que está fazendo um trabalho magnífico de identificar novos mercados para investimentos aqui no Brasil. O ministério enxerga que está ocorrendo uma mudança na cadeia global de valores. As empresas estão redistribuindo seus investimentos, que não mais ficarão concentrados na China e nos Estados Unidos, mas também em outros países.
Houve alguma outra medida importante no combate à pandemia?
Nossa atuação diplomática tem produzido bons efeitos. Foi graças ao diálogo e ao bom relacionamento que conseguimos insumos para a hidroxicloroquina vindos da Índia num momento em que o mundo estava querendo esse material e tinha dificuldade para conseguir. Há uma relação especial entre o Brasil e a Índia. Tenho conversado bastante com o chanceler indiano e compartilhamos visões de mundo muito próximas. Quanto aos Estados Unidos, a mesma coisa. Graças à excelente relação que temos com o governo norte-americano, conseguimos a doação de 2 milhões de comprimidos de cloroquina, mais mil respiradores. Em muitos casos, foi importante a nossa atuação para facilitar as compras de equipamentos da China, por exemplo.
De que forma o Itamaraty avalia a atuação da Organização Mundial da Saúde?
Reconhecemos a importância da OMS, mas achamos que a instituição teve uma atuação que deixou a desejar desde o começo da pandemia. Houve muito ruído quanto a recomendações para evitar contágio, precauções, medicamentos ou tratamentos que funcionam ou não. Isso causou confusão ao redor do mundo. Pensamos que uma organização dessa natureza tem de ter transparência, mostrar como são formuladas essas recomendações, entre uma série de outros fatores.
Qual marca o senhor gostaria que sua gestão deixasse?
Fazer do Itamaraty parte do Brasil. Um instrumento do povo. Trazer o Brasil para dentro do Itamaraty. E pôr o Itamaraty dentro do Brasil.
Cristyan Costa, Revista Oeste