terça-feira, 28 de julho de 2020
"O ‘foro privilegiado’ é um veneno", por J.R. Guzzo
Mesmo para os padrões de safadeza da Câmara dos Deputados do Brasil, de seus presidentes e de suas mesas diretoras, regularmente colocados entre os mais lamentáveis do planeta, é um exagero o que estão fazendo ali com o projeto de lei que acaba com uma das mais espetaculares aberrações da vida política nacional — o “foro privilegiado”. Trata-se, pura e simplesmente, de um insulto declarado aos 200 milhões de brasileiros. Por meio dessa fraude legal maciça, os parlamentares, ministros de Estado, governadores, juízes, procuradores e comandantes das Forças Armadas podem cometer o crime que quiserem, do roubo ao homicídio qualificado, sem ter de responder por nada isso diante da Justiça, como acontece com qualquer outro cidadão deste país.
Seus casos são apreciados num “foro especial” — ou seja, em português claro, num tapetão onde basicamente eles julgam a si próprios e ninguém é condenado nunca. O remédio para essa alucinação está pronto. Mas o presidente da Câmara e as gangues que mandam no pedaço não deixam que ele seja aplicado.
O esforço para eliminar o “foro privilegiado”, o principal atrativo que a vida política brasileira oferece aos corruptos, membros de quadrilhas e delinquentes em geral, está sendo feito, acredite se quiser, desde o começo de 2013 — isso mesmo, há sete anos e meio. Em maio de 2017, enfim, a emenda constitucional que desmancha o pior foco de impunidade em vigor na sociedade brasileira (sim, essa trapaça é um dos pontos capitais da nossa “Constituição Cidadã”) foi aprovada no Senado.
Pela nova regra, o “foro especial” fica restrito ao presidente da República e mais uns poucos peixes graúdos. Todos os demais — coisa de 25 mil pessoas, ou por aí — perdem o direito de matar a mãe e ir ao cinema, como é hoje. Só que a tentativa de moralização até agora não adiantou nada. Logo depois de aprovado pelos senadores, o projeto foi enviado para a votação na Câmara. Você já imagina o que aconteceu, não é? O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, enfiou a coisa numa gaveta — e, até hoje, três anos depois, não colocou a emenda em votação. Ou seja: continua tudo na mesma.
Como é possível impedir, durante três anos inteiros, a votação de um projeto que tenta demonstrar um mínimo de respeito pelo cidadão? Não há absolutamente nenhum motivo para isso que não seja a recusa em limitar a impunidade de que desfrutam hoje os políticos e o resto da manada descrita acima. Rodrigo Maia custa ao contribuinte brasileiro mais de R$ 6,5 milhões por ano; você paga a casa de 800 metros quadrados que ele ocupa em Brasília, seus oito empregados domésticos, suas dezenas de funcionários, suas diárias de US$ 400 quando viaja para o exterior e mais um caminhão de coisas.
O mínimo que poderia dar em troca seria trabalhar com alguma consideração por quem o sustenta. Mas ele não apenas se nega a trabalhar a favor; faz questão de trabalhar contra.
O “foro privilegiado” é um veneno. Não há nada mais hipócrita do que aparecer no jornal e na televisão para declamar enrolação “em defesa da democracia” e impedir que se tente moralizar um pouquinho a atividade política no Brasil. Mas assim é a vida real. Maia foi acusado em 2017 de fazer parte da coleção de políticos comprados pela Odebrecht; a Justiça não chegou nem perto dessa história.
Em 2019 foi denunciado pela Polícia Federal por corrupção passiva, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro; como tem foro privilegiado, a PF mandou tudo para o ministro Edson Fachin, do STF, que por sua vez passou a bola para a Procuradoria-Geral da República, que até hoje não fez nada. Não está ansioso em mudar coisa nenhuma.
O Estado de São Paulo