Sandra Aparecida está entre os 100 milhões de brasileiros que não têm coleta de esgoto; outros 35 milhões não possuem acesso à água tratada
A professora Sandra Aparecida Gonçalves, paulista, 52 anos, mora há 17 na Chácara Quiriri, em Carapicuíba, periferia da Grande São Paulo. É uma das veteranas do bairro. Assim como ela, a maioria dos moradores chegou com a promessa de viver em um loteamento regularizado. Porém, o responsável desapareceu com o dinheiro dela e de outras famílias, que se viram obrigadas a improvisar suas moradias. Assim nasceu a favela, que segue instalada no mesmo local até hoje.
O crescimento desordenado dos imóveis somado ao descaso do poder público provocou distorções de infraestrutura comuns em várias partes do Brasil (hoje, 5,2 milhões de brasileiros vivem em moradias irregulares, conforme o IBGE): falta de ruas asfaltadas, iluminação, imóveis em situação irregular e ausência de qualquer planejamento urbanístico. Além do quadro descrito, Sandra e outras 1.500 famílias que moram na Chácara Quiriri não têm acesso à água tratada nem à coleta de esgoto.
“Hoje tem”, afirma Sandra, ao ligar a torneira da cozinha e lavar uma das mãos. “Mas não é sempre assim. De manhã e à noite sempre falta”, relata. Segundo ela, o encanamento é irregular e, embora seja de conhecimento da Sabesp e das autoridades locais, nada foi feito. A descarga, por exemplo, cai numa fossa improvisada — muito comum nas zonas rurais, o tratamento não é completo, como numa estação de esgoto. “A água do chuveiro, das pias e da máquina de lavar vai parar direto num manancial”, explica Sandra.
Faltam também lixeiras. Todos os moradores têm de depositar os resíduos numa única caçamba. Sacolas se amontoam até cair. Não é raro ver ratos e baratas quando o sol se põe. Ao anoitecer, principalmente em dias quentes ou chuvosos, o cheiro do rio torna-se extremamente desagradável, sobretudo para aqueles que moram em suas margens. No caso de Sandra, a casa dela fica um pouco distante, no alto da favela.
De acordo com Sandra, ela e a vizinhança não pagam contas de água e luz. Contudo, garante que é de interesse dos moradores fazê-lo, de modo que haja melhoria nos serviços precários que recebem. “Pediria, hoje, a legalização dessa situação”, desabafa, receosa de que possa vir a desenvolver, no futuro, problemas de saúde em razão dessa carência.
Sandra e as famílias da Chácara Quiriri fazem parte dos 135 milhões de brasileiros que não têm acesso ao saneamento básico.
Nova legislação
Em 15 de julho deste ano, o presidente Jair Bolsonaro sancionou um marco para o Brasil: o do saneamento. A medida amplia a presença do setor privado em uma área hoje dominada pela ineficiência das estatais. A nova lei vai aumentar a concorrência entre as empresas. Além disso, o objetivo principal é universalizar o saneamento (prevendo coleta de esgoto para 90% da população) e o fornecimento de água potável para 99% dos brasileiros até o fim de 2033.
“E ainda vamos ter investimentos da ordem de R$ 500 bilhões no setor”, afirmou a Oeste Diogo Mac Cord, secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia. Segundo ele, a partir de agora as companhias públicas vão ter de se movimentar, caso queiram manter sua prestação de serviços. “O ‘não fazer nada’ não é mais uma opção”, garantiu, ao mencionar que metas terão de ser previstas nos contratos e cumpridas por quem vencer os processos de licitação (atualmente, isso não ocorre).
“No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 98% dos contratos não têm metas”, observou Mc Cord. “Quais seriam elas, que passarão a valer agora? Primeiro, a universalização. Segundo, a redução de perdas, porque hoje o Brasil desperdiça, em média, 40% da água fornecida. Em terceiro, a qualidade no serviço prestado, como proporcionar encanamentos que evitem evasão”. De acordo com o secretário, quem não cumprir aquilo que prometeu, perde a licitação. “Temos que acabar com o estelionato: empresas que assinam contratos e deixam de cumpri-los”, concluiu.
Na contramão dos discursos de parlamentares de esquerda, Mc Cord garante que não haverá aumento na conta de água, em razão da concorrência. Quanto mais empresas estiverem interessadas em prestar o serviço, mais barato ele fica. Entre outras facilidades, a medida possibilita a privatização de estatais, o que pode trazer para os cofres dos governadores no mínimo R$ 130 bilhões. Novos empregos também serão criados. “Cerca de 700 mil em 14 anos”, acredita o secretário.
Impacto social
“Estamos no século XIX”, resumiu Édison Carvalho, presidente do Instituto Trata Brasil. Para ele, o marco do saneamento não vai apenas modernizar o setor, mas trazer dignidade para os milhões de brasileiros que hoje não usufruem do serviço. “Espero que, até o prazo determinado na lei, a gente consiga virar essa página”, disse Carvalho. “O Brasil está muito atrasado”.
De acordo com o especialista, Norte e Nordeste serão as regiões mais beneficiadas com a nova lei, que hoje têm uma série de carências a serem superadas, ao ressaltar a unidade que deve haver entre prefeitos, governadores e União. Além disso, conforme Carvalho, o marco irá contribuir para a redução de doenças provocadas em razão da falta de saneamento.
“Só de diarreia, tivemos 230 mil internações em 2018”, afirma Carvalho. “São pessoas que estão dividindo leitos com pacientes portadores da covid-19. Vivemos uma crise sanitária brutal. São pessoas que sofrem por uma deficiência que não é de hoje”. Pessoas como Sandra Aparecida Gonçalves e os moradores da Favela Chácara Quiriri.
Quer saber mais sobre empresas estatais? Leia “O custo da ineficiência”, reportagem publicada na edição n° 2 de Oeste
Cristyan Costa, Revista Oeste